Raciocinar sem um cérebro é possível? Este fungo mostra que temos de repensar o que é a inteligência

Mesmo sem um sistema neuronal, o Physarum polycephalum é capaz de resolver labirintos, tomar decisões ou aprender por erro e tentativa. As suas habilidades levam os cientistas a questionar os fundamentos da cognição.

Physarum polycephalum numa placa de Petri.
A imagem mostra o fungo Physarum polycephalum a crescer numa placa de Petri. Foto: Nirosha Murugan, Levin laboratory, Tufts University e Wyss Institute da Universidade de Harvard.

Uma mancha de bolor nas nossas casas é facilmente eliminada com água e uma boa dose de lixívia. É uma fórmula infalível, mas, dentro de um laboratório, causaria o pânico entre os cientistas.

Mofos, leveduras e outros tipos de fungos são organismos unicelulares fascinantes para os micologistas. E há um em particular que, nos anos mais recentes, está a gerar um enorme entusiasmo entre os investigadores.

O seu nome é Physarum polycephalum e, na década de 1950, chegou até a ser uma estrela de Hollywood no clássico filme de terror The Blob (traduzido em Portugal para Blob: Outra Forma de Terror), uma criatura pegajosa que devora tudo por onde passa.

O que é o P. polycephalum?
É um organismo unicelular gigante, com múltiplos núcleos dentro de um citoplasma e pode atingir vários metros de cumprimento.

Hoje, esse seu apetite insaciável é o que mais intriga os cientistas. Não tendo cérebro ou sistema nervoso, o Physarum polycephalum já se mostrou capaz de resolver labirintos, tomar decisões, adaptar-se a ambientes estranhos, antecipar obstáculos ou até aprender com experiências anteriores. As suas estratégias para encontrar alimentos estão a deixar os especialistas boquiabertos.

Um engenheiro brilhante com fome de aveia

Este minúsculo organismo conseguiu até recriar redes ferroviárias e autoestradas em miniatura. A experiência foi conduzida na Universidade de Hokkaido, no Japão. Os cientistas colocaram flocos de aveia em localizações estratégicas replicando as cidades da área metropolitana de Tóquio.

Rede ferroviária de Tóquio recriada pelo fungo Physarum
Em pouco mais de um dia, o Physarum recriou a rede ferroviária de Tóquio, explorando as características do ambiente para alcançar os flocos de aveia com o menor custo de tempo e de energia. Foto: © Tim Tim (VD fr) / Slime Mold Network / CC BY-SA 4.0 CC BY-SA, via Wikimedia Commons

Ao explorar este mapa, o Blob espalhou-se, criando uma densa rede de filamentos, que eliminou os caminhos menos eficientes e selecionou as ligações mais rápidas. O comportamento é um típico exemplo de otimização biológica, que explora as características do ambiente para alcançar um destino com o menor custo de tempo e de energia.

Mesmo sem um isco para o atrair, o Physarum polycephalum mantém esta habilidade, como descobriram os cientistas da Universidade de Harvard. A investigação demonstrou que, na ausência de um alimento, esta viscosa criatura continua a tomar decisões calculadas para explorar novos caminhos com base nas características ambientais.

A capacidade que Physarum polycephalum tem para contrair e dilatar ritmicamente o seu citoplasma aquoso permite-lhe sondar o espaço físico circundante, mudando o seu comportamento à medida que interage com o ambiente.

Como se desloca o P. polycephalum?
O Physarum move o seu citoplasma aquoso em ondas regulares, num processo conhecido como fluxo de transporte, conseguindo deslocar-se cinco centímetros por hora.

Chris R. Reid, da Universidade Macquarie, na Austrália, conseguiu provar que o seu sistema de navegação é ainda mais sofisticado. O fungo deixa um rasto translúcido, uma espécie de “memória espacial”, lembrando-lhe que já passou por aquele caminho e que, diante de novos lugares por explorar, não vale a pena repetir o percurso.

Uma surpreendente aprendizagem

No Centro Nacional Francês de Investigação Científica, o Physarum polycephalum ultrapassou com êxito mais um obstáculo. Desta vez foi desafiado a atravessar um campo minado de substâncias amargas, mas inofensivas, para chegar a uma fonte de alimento.

Série de imagens em time-lapse mostra o Physarum a crescer
A série de imagens em time-lapse mostra o Physarum a crescer num padrão de "tampão" durante 13 horas, ramificando-se depois em direção à lateral do prato com três discos. Fotografia: Nirosha Murugan, Levin laboratory, Tufts University e Wyss Institute da Universidade de Harvard.

Inicialmente relutante, o fungo percebeu, ao final de 48 horas, que o elemento estranho não representava um perigo, seguindo rapidamente em direção ao seu repasto. Depois de confrontado várias vezes com os resíduos desagradáveis, o organismo aprendeu a não o temer, um comportamento que os cientistas denominam de habituação.

Uma nova compreensão da inteligência

As experiências que têm vindo a ser realizadas desafiam o nosso conhecimento sobre a inteligência e a sua relação entre o cérebro, o corpo e o ambiente que nos rodeia. Os cientistas estão convictos de que o estudo da vida unicelular oferece uma maior compreensão sobre os fundamentos da cognição e do comportamento animal, incluindo o nosso.

Investigações mais profundas sobre como estes processos são usados na tomada de decisões ajudar-nos-ão a entender melhor os nossos cérebros e talvez até fornecer contributos importantes sobre novas formas de computação inspiradas na natureza.

A questão essencial, na verdade, é que desconhecemos quantas formas de vida, entre amebas, fungos e organismos similares utilizam sistemas de aprendizagem não neuronais. O Physarum polycephalum tem sido o organismo mais dissecado pelo simples facto de ser aquele que é mais fácil de ser estudado.

Qual a função do P. polycephalum?
À semelhança de outros fungos saprófitos, é um decompositor que se alimenta de matéria orgânica em decomposição, ajudando a reciclar os nutrientes dos ecossistemas.

O Physarum oferece aos cientistas uma oportunidade rara de observar as suas decisões sobre para onde se deve mover em tempo real. Pode haver, portanto, muitos outros fungos a possuir também formas misteriosas de inteligência.

Physarum polycephalum no tronco de uma árvore
O Physarum polycephalum usa o seu citoplasma aquoso para sondar o espaço físico envolvente, alterando o seu caminho à medida que interage com o ambiente. Foto: Bill Sheehan (B_Sheehan), CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons

O mundo natural pode estar repleto de inteligência e nós não fazemos a mínima ideia do que são estas criaturas capazes de fazer. Essa ideia, tão fascinante para a ciência, não deixa de ser também um irresistível enredo para um filme de terror.

Referências do artigo

Atsushi Tero, Seiji Takagi, Tetsu Saigusa, Kentaro Ito, Dan P. Bebber, Mark D. Fricker, Kenji Yumiki, Ryo Kobayashi, and Toshiyuki Nakagaki. Rules for Biologically Inspired Adaptive Network Design. Science Adviser

Nirosha J. Murugan, Daniel H. Kaltman, Paul H. Jin, Melanie Chien, Ramses Martinez, Cuong Q. Nguyen, Anna Kane, Richard Novak, Donald E. Ingber & Michael Levin. Mechanosensation Mediates Long-Range Spatial Decision-Making in an Aneural Organism. Advanced Materials

Chris R. Reid. Thoughts from the forest floor: a review of cognition in the slime mould Physarum polycephalum. Animal Cognition

Romain P. Boisseau, David Vogel and Audrey Dussutour. Habituation in non-neural organisms: evidence from slime moulds. Proceedings of the Royal Society B

Ferris Jabr. How brainless slime molds redefine intelligence. Nature