Quando o calor mata: aquecimento global ligado a 1 500 mortes na Europa em apenas dez dias

Um novo estudo estima que 1 500 pessoas morreram durante a recente vaga de calor na Europa devido ao aquecimento global provocado pelo ser humano. É a primeira vez que se quantifica diretamente a mortalidade atribuível às alterações climáticas num evento específico de calor extremo.

Temperaturas extremas na Europa Ocidental
A primeira onda de calor da Europa Ocidental afetou países como Portugal, Espanha, França, Itália ou Alemanha, com temperaturas recorde para junho em várias localidades.

A primeira onda de calor do verão europeu chegou mais cedo do que o habitual e fê-lo com força devastadora. Portugal, Espanha, França, Itália e Alemanha registaram temperaturas recorde para o mês de junho, com valores acima dos 40 ºC em diversas regiões - e até 46,6 ºC em Mora, no distrito de Évora, ou 45,4 ºC em Alvega.

Em Barcelona, as noites tornaram-se tórridas, com mínimas iguais ou superiores a 25 ºC consecutivas durante vários dias, dificultando o descanso e comprometendo a saúde de milhares. O Mediterrâneo, com águas anormalmente quentes para a época do ano, contribuiu para prolongar a sensação térmica sufocante nas zonas costeiras.

Estudo demonstra o papel das alterações climáticas na perda de vidas humanas

Os investigadores do Imperial College London e da London School of Hygiene and Tropical Medicine avançaram com um estudo inédito que cruza simulações climáticas com dados epidemiológicos, atribuindo 1 500 mortes diretamente ao aquecimento global. É um salto metodológico: até agora, os estudos de atribuição rápida limitavam-se a demonstrar o papel das alterações climáticas no agravamento das condições meteorológicas. Pela primeira vez, quantifica-se o impacte em vidas humanas de forma concreta, dias após o evento.

Para a climatóloga Friederike Otto, “essas pessoas só morreram por causa das alterações climáticas; estariam vivas se não tivéssemos queimado carvão, petróleo e gás ao longo do último século”.

Combinando modelos que simulam um mundo sem emissões de gases com efeito de estufa com dados de mortalidade em 12 cidades europeias, os autores calcularam que dois terços das mortes verificadas durante a vaga de calor se devem ao “excesso” de calor provocado pelo aquecimento global. As cidades de Londres, Paris, Frankfurt, Madrid, Lisboa, Atenas, Milão e Roma foram algumas das analisadas, com destaque para Milão, onde se registou o maior número de mortes atribuídas ao calor adicional. A cidade portuguesa de Lisboa foi exceção, com um impacte térmico menor devido à influência moderadora do Atlântico.

Este novo estudo vem reforçar as conclusões de trabalhos anteriores, como o publicado em 2023 na revista Nature Medicine, que estimou mais de 61 mil mortes relacionadas com o calor durante o verão de 2022, o mais quente jamais registado na Europa. Nesse verão, o excesso de calor matou sobretudo mulheres e idosos, com particular incidência em países mediterrânicos. Embora muitos governos tenham ativado planos de prevenção, a elevada mortalidade revelou a sua ineficácia relativa e a necessidade urgente de revisão.

Sem noites frescas nem arrefecimento: como o calor mata em silêncio

A fisiologia humana é especialmente vulnerável ao calor extremo. Quando a temperatura ambiente se aproxima ou ultrapassa os 37 ºC, os mecanismos naturais de dissipação térmica, como a vasodilatação ou a sudorese, tornam-se insuficientes. A evaporação do suor é o único processo eficaz para baixar a temperatura corporal - mas exige constante reposição hídrica, especialmente em grupos de risco.

Os idosos, pessoas com doenças crónicas e indivíduos em situação de pobreza energética, sem acesso a ar condicionado, são os mais afetados. A ausência de noites frescas impede o descanso, agrava doenças e aumenta os internamentos hospitalares. O calor extremo é, assim, uma ameaça silenciosa, mas cada vez mais visível, para a saúde pública.

episódios de calor extremo e fisiologia humana
A fisiologia humana é especialmente vulnerável ao calor extremo, designadamente causada pela insuficiência dos mecanismos naturais de dissipação térmica perante os episódios de calor extremo.

O fenómeno não se limita ao sul da Europa. Os países do centro e do norte do continente, como o Reino Unido, Alemanha ou Noruega, também registaram valores anómalos para junho. Contudo, nestes territórios, a ausência de cultura de prevenção e a escassa disponibilidade de sistemas de arrefecimento tornam a população particularmente vulnerável. A adaptação às ondas de calor deve ser uma prioridade europeia transversal, e não apenas para os países mediterrâneos.

Os modelos climáticos preveem uma elevada probabilidade - acima de 70 % - de que julho, agosto e setembro apresentem temperaturas acima da média, reforçando a possibilidade de novas vagas de calor nas próximas semanas. A persistência de águas marinhas muito quentes reforça esse cenário.

Perante essa perspetiva, os autores do estudo defendem medidas urgentes: reforço de sistemas de alerta, infraestruturas verdes nas cidades, políticas de eficiência energética e estratégias de saúde pública centradas nos mais vulneráveis. Reduzir o uso de combustíveis fósseis não é apenas uma medida ambiental - é também um ato de prevenção médica.

Referência da notícia

Ballester, J., Quijal-Zamorano, M., Méndez Turrubiates, R. F., Pegenaute, F., Herrmann, F. R., Robine, J. M., ... & Achebak, H. (2023). Heat-related mortality in Europe during the summer of 2022. Nature Medicine, 29(7), 1857-1866. https://doi.org/10.1038/s41591-023-02419-z