Por que é o gelo escorregadio? A teoria ensinada na escola está afinal errada!

Novo estudo desmonta uma teoria da Física aceite há quase 200 anos pela comunidade científica, mostrando também que questionar os paradigmas é o caminho para avançar no conhecimento.

Crianças deslizam na neve
Acreditava-se, até agora, que a pressão do corpo no gelo através de um material como uma prancha ou um sapato criava uma camada de água deslizante. Um novo estudo mostra que não é bem assim. Foto: Pxhere/domínio público

Durante quase dois séculos, as crianças aprenderam na escola que o gelo se torna escorregadio devido à pressão e fricção aplicadas sobre a sua superfície, causando o seu derretimento. Caminhar numa calçada gelada no inverno poderia, por isso, terminar facilmente numa queda aparatosa, já que a pressão do corpo através do sapato supostamente criava uma fina camada de água.

Essa justificação, difundida desde a teoria de James Thomson (1786-1849), é agora questionada por novos estudos. Uma investigação conduzida na Universidade de Saarland, na Alemanha, revelou que não é a pressão nem a fricção que tornam o gelo escorregadio. A explicação está, afinal, na interação entre os dipolos moleculares do gelo e os dos materiais de contacto, como a sola de um sapato.

O que é exatamente um dipolo? Um dipolo molecular surge quando uma molécula possui regiões com carga parcial positiva e parcial negativa, conferindo à molécula uma polaridade geral que aponta para uma direção específica.

Esta nova teoria do professor Martin Müser e dos colegas Achraf Atila e Sergey Sukhomlinov deita por terra um paradigma enraizado há quase dois séculos por James Thompson, o matemático irlandês que propôs que a pressão e a fricção contribuem para o degelo juntamente com a temperatura.

A estrutura ordenada e desordenada do gelo

Para entender melhor o fenómeno, convém saber como o gelo está estruturado. Abaixo dos zero graus Celsius, as moléculas de água (H₂O) organizam-se numa rede altamente ordenada, na qual todas estão alinhadas entre si, originando uma superfície sólida e cristalina.

Quando alguém pisa esta estrutura perfeitamente ordenada, não é a pressão ou a fricção resultante do sapato que rompe a camada superior de moléculas. É antes a orientação dos dipolos na sola do sapato a interagir com os dipolos do gelo.

As forças concorrentes impedem este sistema de atingir uma configuração estável e ordenada. O que antes estava muito bem nivelado, torna-se então, subitamente, irregular.

A nível microscópico, as forças entre os dipolos no gelo e os do material da sola do sapato quebram a estrutura cristalina no ponto de ligação entre o gelo e o sapato, fazendo com que o piso gelado se torne acidentado, amorfo e, por fim, líquido.

James Thomson propôs a teoria sobre o degelo induzido pela pressão e fricção na década de 1850, tendo o seu trabalho sido publicado por volta de 1849-1861. O seu irmão, William Thomson, publicou uma descrição do conceito, ainda hoje considerada fundamental para o movimento dos glaciares e outros fenómenos do gelo.

Além de deitar por terra quase 200 anos de conhecimento dado por adquirido na comunidade científica, a investigação também desmonta outro equívoco.

Mais um engano desfeito

Até agora, presumia-se também que esquiar abaixo dos 40 °C seria impossível por ser demasiado frio para se formar uma fina película líquida e lubrificante sob os esquis. “Isto também, ao que parece, está incorreto", esclarece o professor Müser, citado na nota de imprensa da Universidade de Saarland.

Patinagem no gelo
Contrariando as atuais suposições, o estudo demonstrou ainda que a película escorregadia do gelo também se pode formar sob temperaturas extremamente baixas. Foto: almadin02/Pixabay

O estudo, publicado na revista na Physical Review Letters, defende que as interações dipolares persistem a temperaturas extremamente baixas. Mesmo perto do zero absoluto, a película líquida ainda se pode formar na zona de interação entre o gelo e o esqui.

Diante destas condições, todavia, a película torna-se mais viscosa do que o mel. Sob esta aparência, dificilmente a reconheceríamos como água, além de ser muito difícil esquiar numa substância tão instável. Ainda assim, contrariamente ao que se pensava, a película existe.

Degelo (gotas de orvalho) na vegetação
A descoberta dos investigadores alemães servirá agora para repensar o que poderá estar por detrás dos fenómenos do degelo. Imagem: Susann Mielke/ Pixabay

Para quem está a recuperar de uma lesão após escorregar no gelo, pouco importa se a culpa foi da pressão, da fricção ou dos dipolos. Mas, para a Física, a distinção é crucial. A comunidade científica está atenta pois a descoberta poderá vir a ter profundas implicações no estudo dos fenómenos do gelo na natureza.

Referências da notícia

Why we slip on ice: Physicists challenge centuries-old assumptions. Saarland University.

Achraf Atila, Sergey V. Sukhomlinov & Martin H. Müser. Cold Self-Lubrication of Sliding Ice. Physical Review Letters