O gelo dá origem a trovoadas: esta descoberta pode explicar a origem dos relâmpagos, segundo uns cientistas na Nature
Uma equipa internacional descobriu que o gelo pode gerar eletricidade quando se deforma e que, com sal, essa capacidade é multiplicada. Esta descoberta não só nos ajuda a compreender como nascem os relâmpagos, como também abre a porta a novas tecnologias em ambientes frios.

O gelo desempenha normalmente um papel discreto na nossa vida quotidiana: arrefece as nossas bebidas, forma glaciares e complica as nossas estradas no inverno. Mas raramente o imaginamos como um ator de alta tecnologia. No entanto, um grupo de investigadores descobriu que este material banal tem um superpoder escondido: pode gerar eletricidade.
O estudo, publicado na revista Nature Physics e liderado por equipas do Instituto Catalão de Nanociência e Nanotecnologia (ICN2), da Universidade Autónoma de Barcelona, da Universidade de Xi'an Jiaotong (China) e da Universidade de Stony Brook (EUA), mostra que o gelo é um material flexoelétrico.
Simplificando, isso significa que, quando é dobrado ou deformado de forma irregular, liberta uma carga elétrica. E o mais surpreendente: se for combinado com sal, este efeito é potenciado até mil vezes.
Flexoelectricidade: quando a dobragem gera eletricidade
A palavra pode parecer complicada, mas a ideia é simples. Há materiais que, quando pressionados, geram eletricidade; chamam-se piezoeléctricos. O quartzo é o exemplo clássico. O gelo não pertence a esse clube, mas tem uma qualidade irmã: a flexoelectricidade.
Scientists find that ice generates electricity when bent.
— Massimo (@Rainmaker1973) September 3, 2025
A new study reveals that ice is a flexoelectric material, meaning it can produce electricity when unevenly deformed. This discovery could have major technological implications while also shedding light on natural pic.twitter.com/du3R0Nk85o
Em vez de exigir uma pressão uniforme, como os piezoelétricos, o gelo responde a deformações irregulares, como a flexão ou a torção. No laboratório, os investigadores descobriram que uma fina folha de gelo gera uma diferença de potencial elétrico quando é dobrada. E quando repetiram a experiência com gelo salgado, a eletricidade produzida foi enorme.
Sabemos que os relâmpagos se formam quando se acumula uma diferença de potencial elétrico suficiente na nuvem. Essa carga está relacionada com a colisão de partículas de gelo que, de alguma forma, acabam eletrificadas. O problema é que o mecanismo exato sempre foi difícil de entender.
A flexoeletricidade parece ser a peça que faltava. Quando os cristais de gelo colidem, deformam-se de forma irregular, e essa deformação gera carga elétrica. No laboratório, as medições da equipa coincidiram com as observadas em trovoadas reais. Por outras palavras, o gelo que se dobra na nuvem pode ser a verdadeira origem dos relâmpagos.
Gelo ferroelétrico: outro superpoder
O estudo também descobriu outra coisa: a temperaturas extremamente baixas, inferiores a -113 °C, o gelo pode tornar-se ferroelétrico.
Nesse estado, a sua superfície desenvolve uma polarização elétrica que pode ser invertida através da aplicação de um campo externo, um comportamento semelhante ao de um íman. Com isto, o gelo acrescenta um segundo “modo elétrico”: a flexoeletricidade a temperaturas mais elevadas (até 0 °C) e a ferroeletricidade em condições de congelação extrema.
De repente, o gelo equipara-se aos materiais avançados atualmente utilizados em sensores e condensadores.
O sal como multiplicador
O gelo puro já é surpreendente, mas quando misturado com sal, os resultados são impressionantes. Com uma concentração suficiente, a eletricidade gerada pode ser até mil vezes superior à do gelo normal e um milhão de vezes mais intensa do que a do sal sozinho.
O segredo está na forma como os iões do sal se movem dentro da estrutura cristalina do gelo e na fina película de água que cobre a sua superfície. Este movimento desigual de cargas cria correntes internas que amplificam o efeito elétrico.
A descoberta abre dois caminhos interessantes. Por um lado, fornece um quadro físico para uma melhor compreensão das trovoadas, um tópico chave na meteorologia. Por outro lado, sugere que o gelo pode tornar-se um material útil para a conceção de dispositivos eletrónicos em ambientes extremamente frios.
Salty ice can generate an electric charge 1,000 times greater than regular ice when strained, according to research in Nature Materials. https://t.co/exGL2d65oQ pic.twitter.com/ZaGDIArMKy
— Nature Portfolio (@NaturePortfolio) September 15, 2025
Parece-lhe futurista? Talvez, mas não é impossível. Em planetas e luas gelados, onde o gelo é abundante, esta propriedade poderia ser aproveitada como fonte de energia ou como parte de sensores concebidos para funcionar em condições extremas.