Nau portuguesa foi encontrada no Índico com tesouro multimilionário saqueado pelo Abutre, o temível pirata francês

Ao fim de 300 anos no fundo mar, a Nossa Senhora do Cabo foi encontrada na costa de Madagáscar. Conheça aqui a sua história envolta em lendas, fortunas perdidas e perseguições em alto-mar.

Pintura de um navio pirata perseguindo um galeão em alto-mar
A nau Nossa Senhora do Cabo caiu nas mãos de um dos mais temíveis piratas do século XVII. Imagem: pintura de autor desconhecido, representando um barco pirata a perseguir a sua presa, domínio público

Três séculos após sucumbir a um dos mais violentos ataques piratas, a nau portuguesa Nossa Senhora do Cabo foi agora finalmente descoberta no fundo das águas do Índico.

Encontrada próximo da ilha Madagáscar, o seu achado é o resultado de mais de duas décadas de investigação da equipa de arqueólogos do Centro de Preservação de Naufrágios Históricos dos Estados Unidos.

A equipa de arqueólogos, em Madagáscar, na expedição que encontrou a nau Nossa Senhora do Cabo
Na imagem, a equipa de arqueólogos prepara-se para mergulhar nas águas costeiras de Madagáscar, durante a expedição que encontrou a nau portuguesa. Foto: Centro de Preservação de Naufrágios Históricos dos EUA

Foi um longo e minuncioso caminho, envolvendo trabalho de campo, estudos arquivísticos e laboratoriais, mas valeu a pena. O navio, que seguia de Goa para Lisboa, transportava a bordo um dos carregamentos mais valiosos de sempre – lingotes de ouro, pérolas e pedras preciosas, arte sacra, entre várias outras riquezas avaliadas em cerca de 117 milhões de euros.

Um mistério finalmente desvendado

O achado não é somente um grande acontecimento para a arqueologia náutica e subaquática. É também o desvendar de um mistério que perdurou por mais de 300 anos, envolto em lendas, caças ao tesouro ou perseguições em alto-mar.

Para contar esta história, será preciso recuar até 8 de abril de 1721, o fatídico dia em que a nau Nossa Senhora do Cabo foi capturada, próximo da ilha Reunião, pelo infame pirata francês – o “Abutre” Olivier Levasseur.

Olivier Levasseur, mais conhecido como “La Buse” (O Abutre, em francês), nasceu em 1695, em Calais, no Norte da França, e serviu a coroa francesa como corsário durante a Guerra da Sucessão Espanhola (1701-1714).

Nessa função, atacou navios britânicos, do Sacro Império Romano, e dos Países Baixos, construindo uma reputação marcada pela audácia e habilidade. Após o conflito terminar, juntou-se ao pirata inglês John Taylor, passando a comandar os seus saques a partir da ilha de Sainte-Marie, na costa de Madagáscar.

Um valioso espólio saqueado sem esforço

Em abril de 1721, a frota de Levasseur deparou-se com uma presa fácil. Resistindo a uma violenta tempestade, que forçou a tripulação portuguesa a atirar ao mar todos os 72 canhões para evitar o naufrágio, o navio ficou vulnerável. Os piratas tomaram, portanto, a embarcação sem disparar uma única arma, conquistando um dos saques mais valiosos de sempre.

Retrato de “La Buse” pelo ilustrador Michael Faure (1978)
Olivier Levasseur tomou de assalto o navio português sem ter de disparar uma única arma. Imagem: retrato de “La Buse” pelo ilustrador Michael Faure (1978), domínio público

Capturaram ainda o vice-rei português, que acabaria mais tarde por ser resgatado, mas desconhece-se que destino tiveram o arcebispo de Goa e cerca de 200 escravos provenientes de Moçambique.

O navio terá sido levado para Nosy Boraha, antiga ilha de Sainte-Marie, um dos principais refúgios de piratas e corsários durante a Era Dourada da Pirataria. A localização, estratégica por ser próxima de rotas marítimas importantes e sem supervisão colonial, abrigou pelo menos quatro naufrágios ligados à pirataria.

Mapa com a localização da nau Nossa Senhora do Cabo
O mapa mostra a localização da embarcação e do seu tesouro na ilha de Sainte-Marie, próximo de Madagáscar, considerado um dos principais abrigos dos piratas. Foto: Centro de Preservação de Naufrágios Históricos dos EUA

Procurando resgatar a fortuna, o governo francês ofereceu amnistia aos participantes do roubo. Olivier Levasseur também tentou negociar o seu perdão, mas não querendo revelar a localização do tesouro, não teve outra escapatória senão fugir para a Seychelles, onde permaneceu escondido. Acabaria mais tarde por ser capturado e, em 1734, sob a acusação de pirataria, enforcado.

Uma caça ao tesouro com 300 anos

Reza a história que, ainda antes de morrer, virou-se para a multidão e atirou um colar, proferindo uma frase enigmática: “Aquele que decifrar o meu segredo, encontrará o tesouro”.

Consta que o adorno continha uma mensagem criptografada e, apesar deste episódio ser provavelmente o resultado da imaginação popular, o certo é que desencadeou uma corrida ao tesouro que termina agora com a expedição dos arqueólogos americanos.

Estátua da Virgem Maria, encontrada no espólio da nau Nossa Senhora do Cabo
Estátua da Virgem Maria, encontrada no espólio do navio português. Foto: Centro de Preservação de Naufrágios Históricos dos EUA

Entre os cerca de 3300 artefactos recuperados pela equipa do Centro Preservação de Naufrágios Históricos, destacam-se artigos religiosos em marfim e madeira, possivelmente oriundos de Goa, incluindo uma figura da Virgem Maria, parte de um crucifixo e placas com a inscrição “INRI”.

As histórias submersas ainda por revelar

O navio, que havia partido de Goa, na Índia, com destino a Lisboa, transportava uma carga ainda hoje por avaliar, incluindo barras de ouro e prata, joias e até a lendária Cruz de Fogo de Goa – uma majestosa peça de arte feita de ouro e adornada com rubis, safiras, esmeraldas e diamantes, irradiando um brilho, descrito na época, como chama perpétua.

Peças de marfim com as letras "INRI" encontradas na nau Nossa Senhora do Cabo
Peças de marfim com as letras "INRI" (Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum) gravadas. Foto: Centro de Preservação de Naufrágios Históricos dos EUA

Apesar das dificuldades causadas pelo lodo e areia na escavação, os investigadores esperam que os trabalhos continuem a revelar mais detalhes sobre o navio Nossa Senhora do Cabo e outros naufrágios da região.

Referências da notícia

Brandon A. Clifford & Mark R. Agostini. From Goa to Sainte-Marie: An Archaeological Case for the Identification of the Nossa Senhora do Cabo. Center for Historic Shipwreck Preservation.

Olivier Levasseur: sur les traces du trésor perdu du pirate La Buse. Escales - Le Magazine Ponant