Espionagem, pilhagens e lutas por poder: a história do mapa português que revelou o Novo Mundo à Europa
No início do século XVI, o planisfério de Cantino esteve entre os mapas mais cobiçados pelos europeus ávidos de conquistar vantagens geopolíticas e comerciais das novas rotas marítimas exploradas pelos portugueses.

O que faz um mapa português do início do século XVI na Galleria Estense de Modena, em Itália? A pergunta será talvez pouco pertinente tendo em conta a arte e o engenho dos portugueses espalhados pelo mundo.
Mas este atlas tem um interesse especial. Composto por seis pedaços de pergaminho presos a uma tela com um metro e oitenta, o “Planisfério de Cantino”, assim é conhecido, foi um documento revolucionário para a navegação marítima e para uma visão quase completa do mundo até então desconhecido no século XVI.
A sua história é valiosa, com um peso decisivo na exploração do mar e de novos territórios. O atlas de Cantino, datado 1502, revela a informação obtida pelas rotas portuguesas para a Índia e para a costa do Brasil. Com um vasto conjunto de referências políticas e económicas, a sua importância foi crucial não somente para as estratégias geopolíticas da Europa, como para inaugurar uma nova era na navegação marítima.
As primeiras representações das Américas
Estamos diante de um dos primeiros mapas com representações do Novo Mundo. O documento é ainda mais precioso porque transmite uma vasta informação com grande riqueza visual nos seus detalhes e referências geográficas, como linhas costeiras, portos e rios.
Ilustrações de escravos e de ouro, em África, especiarias na Arábia e na Índia, sedas e pedras preciosas no Oriente, representações de indígenas, de papagaios ou de vegetação luxuriante, nos territórios sul americanos, levaram para a Europa os novos conhecimentos trazidos pelos exploradores portugueses.
O planisfério, cuja autoria é desconhecida, mas atribuída a um cartógrafo português, reúne, pela primeira vez, as informações sobre as viagens de Vasco da Gama, no caminho marítimo para a Índia (1497-1499), de Pedro Álvares Cabral, no achado da costa brasileira (1500-1501), ou dos irmãos Corte Real na expedição à Gronelândia e Terra Nova (1500-1502).

Foram ainda incluídos os novos factos relativos às viagens mais recentes de Cristóvão Colombo, na zona das Índias Ocidentais, e também no território que hoje corresponde à Venezuela. O mapa de Cantino é também o primeiro a nomear as Antilhas, o arquipélago constituído sobretudo pelos atuais Cuba, Porto Rico, Jamaica, Haiti e República Dominicana.
Várias outras informações estão refletidas neste mapa, incluindo a circunavegação ao continente africano por Diogo Cão e Bartolomeu Dias ou ainda uma representação puramente especulativa da península da Florida, oficialmente encontrada onze anos mais tarde pelo conquistador espanhol Juan Ponce de León.

O mapa de Cantino, além de incluir o meridiano do Tratado de Torresilhas, introduziu pela primeira vez as linhas do Equador, dos trópicos de Câncer e de Capricórnio e do Círculo Polar Ártico. A nova abordagem marcou o início da localização baseada no cálculo da latitude.
A distância em relação ao Equador passou a ser determinada através da observação da altura do Sol e das estrelas. O método revolucionou a exploração marítima, descartando a navegação medieval através da bússola e inaugurando a navegação moderna (ou astronómica).
O espião ao serviço da nobreza de Itália
Estes e outros elementos fazem do atlas de Cantino um marco da cartografia, com informações privilegiadas e ainda desconhecidas por outras grandes potências do século XVI.
O mapa de Cantino foi por isso muito cobiçado, levando Hércules I d'Este (1472-1505), duque de Ferrara e Módena - uma poderosa cidade-estado do Norte de Itália - a pagar uma avultada quantia a um agente infiltrado para o trazer até si.
Alberto Cantino foi o seu emissário especial enviado à corte portuguesa para se inteirar das missões e explorações dos navegadores portugueses. Infiltrado num repositório de cartas náuticas, terá subornado um funcionário com 12 ducados de ouro, uma grande quantia para a época, conseguindo copiar o mapa e trazê-lo até Itália.

A informação nela contida, porém, ficou rapidamente obsoleta face às contínuas observações cartográficas das viagens portuguesas ocorridas nos meses seguintes. Ainda assim, deram a conhecer a existência do litoral do Brasil e de uma parcela expressiva do litoral atlântico da América do Sul, permitindo aos italianos usufruir de enormes vantagens comerciais sobre as restantes nações europeias.
Os dados incluídos no planisfério de Cantino foram a principal referência para desenhar o Planisfério de Cavério, concluído logo após o regresso de Alberto Cantino a Itália, servindo ainda para atualizar o Planisfério de Waldseemüller de 1507, dois dos mais importantes mapas para a exploração marítima italiana.
Achado acidentalmente numa salsicharia de Modena
O mapa de Cantino ficou quase um século em Ferrara até que, em 1592, o papa Clemente VIII ordenou a sua transferência para o palácio de Modena, onde permaneceu até meados do século XIX.
Em 1873, depois de se perder o seu rasto na sequência de um saque durante tumultos populares, Giuseppe Boni, na altura diretor do Museu Esteense, encontrou-o acidentalmente em Modena, pendurado na parede de um talho.

O seu regresso à coleção da Galleria Estense de Modena aconteceu com grande alarido e entusiasmo por parte dos historiadores italianos. O planisfério de Cantino é ainda hoje uma das peças mais valiosas no espólio do museu, testemunhado os primeiros esforços dos europeus para explorar e mapear o mundo.
Referências da notícia
Joaquim Alves Gaspar. Planisfério de Cantino: Um mapa para o mundo (quase) inteiro. Jornal Público.
Joan Carles Oliver Torelló. O atlas que foi desenhado por um português. National Geographic Portugal.
Joan Carles Oliver Torelló. A Spy, a Map, and the Quest for Power in 16th-Century Europe. National Geographic History magazine.