Mapear o céu a partir do seu bolso: como milhões de telemóveis estão a ajudar a estudar a atmosfera
Esta proposta não serviria apenas para compreender melhor uma parte caótica e pouco explorada da nossa atmosfera. Se implementada em grande escala, poderia reduzir os erros de localização em vários metros, uma diferença crucial em situações de emergência.

Muito acima de nós, onde a atmosfera começa a misturar-se com o espaço, existe uma região sobre a qual ainda sabemos pouco - os cientistas chamam-lhe ionosfera. É invisível a olho nu, mas essencial para a nossa vida conectada, porque pode distorcer (ou não) os sinais de comunicação dos satélites. E embora sempre tenha existido, estudá-la costumava ser difícil.
Hoje, porém, milhões de smartphones em todo o mundo estão a mudar essa história.
A ideia parece simples mas revolucionária: utilize os sensores GNSS (Global Navigation Satellite System) dos smartphones para mapear a ionosfera em tempo real. Por detrás deste projeto está Brian Williams e a sua equipa na Google Research, na Califórnia. Colocaram uma questão ousada: em vez de ver a ionosfera como algo que interfere com os sinais GPS, e se usássemos essa interferência para a estudar?
A chave está no facto de muitos smartphones modernos receberem sinais GNSS em duas frequências distintas. Analisando a forma como esses sinais variam à medida que atravessam a ionosfera - uma camada entre 50 e 1500 km de altura cheia de partículas carregadas provenientes da radiação solar - podemos estimar o número de eletrões livres num determinado local e tempo.
Where does Earth's atmosphere end and space begin? This and other questions soon will be answered by our Ionospheric Connection Explorer, or ICON, satellite that is launching in early October. Learn more about this @NASASun mission: https://t.co/bzPQVtczPm pic.twitter.com/egqHGrec9N
— NASA (@NASA) September 5, 2018
Esses eletrões livres abrandam os sinais de satélite e, se esse atraso não for corrigido, pode causar erros de localização do GPS de vários metros. Esta nova abordagem poderá melhorar significativamente a precisão do GPS, especialmente em áreas onde os mapas da ionosfera são incompletos ou inexistentes.
Uma rede global sem torres ou antenas
A ionosfera forma-se quando a radiação solar atinge os gases na atmosfera superior, soltando os eletrões dos átomos e criando um plasma de partículas carregadas. Este processo muda constantemente - com o dia e a noite, as estações do ano e, especialmente, durante a intensa atividade solar, como as tempestades solares. Estas alterações afetam os sinais de rádio que viajam dos satélites para os nossos dispositivos, causando erros de localização de vários metros.
Para corrigir esses erros, os satélites de navegação enviam sinais em duas frequências, que são analisados por estações terrestres especializadas para estimar a densidade de eletrões na ionosfera. Mas a construção e manutenção dessas estações é dispendiosa, e a maioria está localizada em países desenvolvidos. Grandes áreas em África, na Índia, no Sudeste Asiático e em grande parte da América do Sul continuam a ser pontos em branco no mapa da ionosfera.
Google utilizó millones de teléfonos Android para hacer un mapa la ionosfera, ¿por qué?
— Pablo Fuente (@PabloFuente) November 15, 2024
Hilo pic.twitter.com/8nrTOjrc11
É aqui que os smartphones fazem a diferença: existem milhões deles, estão ligados, têm sensores e estão em todo o lado. Mesmo que cada um deles faça medições imperfeitas - devido a limitações da antena, edifícios ou mesmo ao corpo do utilizador - a enorme quantidade de dados ajuda a compensar essas imprecisões.
“Em vez de pensar na ionosfera como uma interferência no posicionamento GPS, podemos inverter a perspetiva e considerar os receptores GPS como ferramentas para medir a ionosfera”, explicou Williams.
Mais dados, melhores mapas
Durante os ensaios, a equipa recolheu dados de milhões de telemóveis Android, preservando a privacidade dos utilizadores. Os resultados foram impressionantes: duplicaram a cobertura dos mapas ionosféricos tradicionais e identificaram variações anteriormente não detetadas.
Por exemplo, detetaram bolhas de plasma sobre a Índia e a América do Sul, observaram os efeitos de uma tempestade solar sobre a América do Norte e notaram uma diminuição da densidade de eletrões livres sobre a Europa.
Jade Morton, uma engenheira da Universidade do Colorado que participou no estudo, afirmou que, graças à colaboração aberta, “podemos utilizar os telemóveis para transformar a nossa compreensão do ambiente espacial”.
Porque é que isto é importante?
Para além de expandir a nossa compreensão de uma região atmosférica dinâmica, esta técnica pode melhorar a precisão do GPS em todo o mundo. Com mapas ionosféricos mais detalhados, os erros de GPS podem diminuir em vários metros.
Williams deu um exemplo prático: "Os dispositivos podem distinguir entre uma autoestrada e uma estrada secundária paralela e acidentada. Isto poderia ajudar as equipas de emergência a chegar mais rapidamente ao local certo".
E, como bónus, isto abre a porta à transformação dos smartphones em instrumentos científicos. Os mesmos dispositivos que utilizamos para encomendar comida ou filmar para o Instagram podem ajudar-nos a compreender melhor o nosso céu.
Mais uma vez, a tecnologia prova que, na ciência, nem sempre é preciso olhar para mais longe - por vezes, basta olhar para o que já está na sua mão.
Referência da notícia
Smith et al. Mapping the ionosphere with millions of phones . *Nature*, 2024.