Do ninho ao prato: o papel do Hebo Matsuri na preservação da cultura alimentar japonesa

O Hebo Matsuri, realizado em Kushihara, no Japão, celebra a tradição de criar e consumir vespas, unindo saberes ancestrais, identidade cultural, sustentabilidade e nutrição num evento único e festivo. Conheça mais aqui!

Ninho de vespa
Considerado o festival mais perigoso do mundo, no "Hebo Matsuri" pode encontrar o peculiar prato de vespas e larvas chamado de hachinoko.

A entomofagia, prática alimentar que envolve o consumo de insetos, é registada em diferentes culturas humanas há milénios e possui relevância tanto histórica quanto nutricional.

No Japão, particularmente na região central do país, essa tradição apresenta uma expressão singular no Hebo Matsuri, um festival anual realizado em Kushihara, antiga vila atualmente incorporado à cidade de Ena, na província de Gifu.

O evento ocorre a 3 de novembro, coincidindo com o feriado nacional conhecido como Bunka no Hi (Dia da Cultura), e celebra o consumo e a valorização culinária da vespa Vespula flaviceps, denominada localmente “hebo.

Contexto Histórico e Cultural

O consumo de insetos no Japão, embora menos difundido atualmente, foi historicamente significativo, sobretudo em áreas rurais e montanhosas com disponibilidade limitada de recursos proteicos de origem animal.

Durante os períodos Edo (1603–1868) e Meiji (1868–1912), populações do interior recorreram a insetos como fonte complementar de proteína e micronutrientes, incluindo aminoácidos essenciais, cálcio, ferro e vitaminas do complexo B.

Na província de Gifu e na vizinha Nagano, além das vespas, eram consumidos gafanhotos (locusta migratoria), larvas de abelha e cigarras.

Cultivo
Algumas vespas só são comestíveis a partir do 5º ano de idade, já que larvas de 4 anos ou menos são pequenas, o processo de cultivo é difícil.

O Hebo Matsuri surge como uma formalização e celebração dessa herança alimentar, transformando uma necessidade histórica num evento comunitário, competitivo e turístico.

Atualmente, a prática é vista não apenas como preservação cultural, mas também como exemplo de alimentação sustentável, considerando o baixo impacto ambiental da criação de insetos em comparação com pecuária convencional.

Biologia e Ecologia da vespa utilizada

A espécie central do festival, Vespula flaviceps, pertence à família Vespidae e caracteriza-se por um padrão de coloração preta e branca, diferindo visualmente das vespas amarelas comuns noutras regiões do mundo.

São insetos sociais, com colónias anuais que atingem o seu auge no final do verão e início do outono. Os ninhos, geralmente subterrâneos, abrigam larvas altamente valorizadas pelo sabor e textura.

No verão, caçadores locais capturam rainhas ou pequenas colónias e transferem-nas para caixas de madeira, onde são alimentadas e monitorizadas. Esta forma semi-doméstico garante colónias maiores e mais saudáveis no período do festival.

Organização do Festival

O evento é estruturado à volta de uma competição para determinar qual o participante que cultivou o ninho mais pesado. Os ninhos, pesando por vezes mais de 7Kg, são avaliados não apenas pelo peso, mas pela qualidade e vitalidade das larvas.

Após a pesagem, parte da produção é preparada para consumo imediato no festival, enquanto outra é comercializada.

As preparações culinárias típicas incluem: Hachinoko gohan: arroz cozido misturado com larvas de vespa, que conferem um sabor levemente adocicado e textura cremosa.

Iguaria
Apesar de estranho, tal iguaria é muito apreciada e saborosa pelos turistas corajosos e moradores locais que afirmam ter um sabor adocicado e crocante, além de ser rico em vitaminas e proteínas.

Gohei mochi com hebo: bolos de arroz grelhados cobertos por uma pasta à base de miso, amendoim e larvas trituradas.

Tsukudani de hebo: larvas cozidas lentamente em molho de soja, açúcar e mirin, técnica tradicional de conservação.

Esses pratos são vendidos em barracas durante o festival, acompanhados por apresentações culturais, concursos e exibições fotográficas sobre a vida das vespas e o trabalho dos criadores.

Dimensão Sociocultural

O Hebo Matsuri desempenha um papel central na coesão comunitária. A caça, criação e a preparação dos insetos envolvem famílias inteiras e promovem a transferência de conhecimento tradicional entre gerações.

"Nas últimas décadas, a continuidade dessa prática foi ameaçada pela diminuição da população rural e pela falta de interesse das gerações mais jovens."

Explica a Organização do evento

Iniciativas locais têm procurado revitalizar o festival, incluindo a criação de grupos como as “Hebo Girls”, formadas por mulheres da comunidade que se dedicam a promover o consumo e a culinária à base de vespas.

O evento também passou a atrair turistas nacionais e estrangeiros interessados em experiências gastronómicas incomuns, o que fortalece a economia local.

Relevância Nutricional e Sustentabilidade

Do ponto de vista nutricional, a larva de Vespula flaviceps apresenta um elevado teor proteico, de baixo teor de gordura saturada e conteúdo relevante de minerais.

Em termos ambientais, a criação de insetos exige menos água, espaço e ração do que a criação de animais de grande porte, além de emitir significativamente menos gases de efeito estufa.

Assim, o festival também serve como vitrine para discussões sobre a entomofagia como alternativa alimentar sustentável em escala global.

Contudo, mais do que um simples festival gastronómico, o Hebo Matsuri representa a interseção entre tradição, ecologia e inovação alimentar, servindo como modelo de resiliência cultural num mundo marcado pela homogeneização dos hábitos alimentares.

A continuidade dessa celebração depende da capacidade de atrair novas gerações e de dialogar com um público cada vez mais atento às implicações ambientais e culturais daquilo que consome.