As mulheres que foram pagas para contar estrelas e acabaram por descobrir como funciona o universo

Um grupo de mulheres brilhantes trabalhava no Observatório de Harvard classificando estrelas por um salário mínimo, sem saber que os seus cálculos iriam revelar a estrutura do cosmos, possibilitar a medição de distâncias astronómicas e lançar as bases da astrofísica moderna.

As 'computadores' de Harvard a trabalhar, incluindo Henrietta Swan Leavitt (sentada, terceira a contar da esquerda), Annie Jump Cannon, Williamina Fleming (de pé, ao centro) e Antonia Maury.

No final do século XIX e início do século XX, um grupo de mulheres trabalhou no Observatório do Harvard College sob a direção de Edward Charles Pickering. Eram conhecidas como as “computadores de Harvard” - ou, de forma menos simpática na altura, “o harém de Pickering” - porque realizavam tarefas meticulosas de cálculo e catalogação de estrelas por um salário muito baixo.

No entanto, estas jovens mulheres não se limitavam a contar estrelas: formaram uma equipa que mudou para sempre a forma como compreendemos o cosmos.

As chamadas “computadores humanas” com o diretor do Observatório do Harvard College, Edward Charles Pickering.

Graças ao seu trabalho, foi estabelecido o moderno sistema de classificação estelar (OBAFGKM), foi descoberto um método fundamental para medir distâncias no universo e foram formuladas ideias pioneiras sobre a composição química das estrelas. O trabalho delas definiu a astronomia do século XX e continua a ser a base da astrofísica moderna.

Esta é a história e o notável legado das figuras centrais desta revolução silenciosa.

Williamina Fleming: a pioneira que abriu o caminho

Williamina Fleming (1857-1911), uma imigrante escocesa que chegou a Boston em circunstâncias difíceis (o marido abandonou-a quando ela estava grávida), tornou-se uma figura-chave no Observatório de Harvard.

Williamina Paton Stevens Fleming fotografada na década de 1890.

Foi inicialmente contratada como empregada doméstica, mas Pickering, impressionado com a sua inteligência e disciplina, levou-a para o observatório.

Fleming supervisionou a equipa de computadores e desenvolveu um dos primeiros sistemas de classificação estelar. Catalogou mais de 10.000 estrelas, identificou estrelas variáveis e novas, e em 1888 descobriu a famosa Nebulosa Cabeça de Cavalo. Também produziu o Catálogo Draper, a base da classificação espectral moderna.

O seu trabalho lançou as bases para o que os seus colegas viriam a aperfeiçoar mais tarde.

Henrietta Swan Leavitt: a mulher que mediu o Universo

A astrónoma americana Henrietta Leavitt (1868-1921) fez uma das descobertas mais importantes da astronomia: a relação entre o período e a luminosidade das Cefeidas, estrelas variáveis que pulsam regularmente.

Henrietta Leavitt, mãe da lei período-luminosidade que permite calcular a distância das estrelas.

Ao estudar milhares de estrelas nas Nuvens de Magalhães, Leavitt descobriu que quanto maior o período de uma Cefeida, maior a sua luminosidade absoluta. Esta lei período-luminosidade tornou-se uma ferramenta de medição cósmica: se o período da estrela for conhecido, a sua verdadeira luminosidade pode ser deduzida e, comparando-a com o seu brilho aparente, a sua distância pode ser calculada.

Este método permitiu a Edwin Hubble, por exemplo, confirmar que a Nebulosa de Andrómeda era na realidade outra galáxia e, mais tarde, medir a expansão do Universo. Sem Leavitt, não haveria cosmologia moderna.

Annie Jump Cannon: a arquiteta do sistema OBAFGKM

A americana Annie Jump Cannon (1863-1941) foi a mente que deu forma final ao sistema de classificação estelar utilizado atualmente. O espetro de uma estrela funciona como a sua “impressão digital”, permitindo identificar os seus elementos, temperatura e outras propriedades quando a sua luz é decomposta.

A icónica astrónoma Annie Jump Cannon sentada à sua secretária.

Mas a classificação existente era confusa e redundante, pelo que Cannon a reduziu a sete tipos fundamentais: O, B, A, F, G, K, M, ordenados por temperatura. Este sistema, adotado a nível mundial em 1922, continua a ser utilizado porque reflete claramente a física estelar: as estrelas mais quentes são do tipo O e as mais frias são do tipo M.

Annie Jump Cannon conseguiu classificar mais de 350.000 estrelas, um recorde extraordinário para a época.

Famosa pela sua rapidez e precisão, Cannon classificou mais de 350.000 estrelas, um recorde imbatível para a época. Também abriu portas para as mulheres na astronomia, tornando-se a primeira mulher a receber um diploma honorário de Oxford e a presidir à União Astronómica Internacional.

Antonia Maury: uma mente original e inspiradora

A nova-iorquina Antonia Maury (1866-1952) contribuiu com uma visão mais detalhada e complexa dos espectros estelares. Embora o seu sistema de classificação não tenha sido amplamente adotado no início por ser demasiado sofisticado para os padrões da época, continha ideias que foram mais tarde reconhecidas como fundamentais.

O trabalho de Antonia Maury revelou-se inspirador para os seus colegas.

Maury descreveu as linhas espectrais com grande precisão, permitindo aos astrónomos identificar estrelas binárias espectroscópicas- sistemas que só podem ser distinguidos através de mudanças nas suas linhas de absorção - e estudar as suas órbitas.

A sua análise detalhada influenciou diretamente o trabalho posterior de Ejnar Hertzsprung (o astrónomo dinamarquês conhecido por ter criado um diagrama que relaciona a luminosidade estelar com a cor), que elogiou publicamente a qualidade e profundidade das suas observações.

Cecilia Helena Payne: A mulher que descobriu de que são feitas as estrelas

Cecilia Payne (1900-1979) chegou a Harvard alguns anos mais tarde, mas o seu trabalho foi diretamente apoiado pelas classificações compiladas por Cannon e pelos dados recolhidos por Fleming, Maury e Leavitt.

Cecilia Payne demonstrou a verdadeira composição das estrelas.

Em 1925, esta lendária astrónoma britânica demonstrou que as estrelas são compostas principalmente por hidrogénio e hélio, contradizendo a crença prevalecente de que tinham uma composição semelhante à da Terra.

A sua tese de doutoramento, considerada uma das mais brilhantes da história da física, estabeleceu as bases da astrofísica moderna. Ela e os seus colegas não se limitaram a contar estrelas: ensinaram-nos a interpretá-las.