Grandes herbívoros das gravuras rupestres voltam ao Vale do Côa para restaurar a natureza e prevenir incêndios

Cavalos selvagens, bovinos primitivos e bisontes-europeus estão a ser reintroduzidos no nordeste de Portugal. As espécies vão recriar os ecossistemas do passado, esperando-se que aumentem a biodiversidade e a resiliência às alterações climáticas.

Herbívoros no vale do côa
Cavalos selvagens, bisontes-europeus e descendentes das vacas primitivas estão a ser reintroduzidos no Vale do Côa para renaturalizar a paisagem. Fotos: Rewilding Portugal e Rewilding Europe

No Vale do Côa, entre o rio Douro e as montanhas da Malcata, no nordeste de Portugal, os humanos e a vida selvagem coexistem desde o paleolítico. Este é um corredor natural que se estende por mais de 120 mil hectares com profundos vales fluviais, que se abrem no meio de montados e serras.

Quando a neblina matinal começa a se dissipar, o Grande Vale do Côa revela ainda acentuados desfiladeiros, onde abutres e águias nidificam nas falésias.

Os prados verdejantes, nesta altura do ano, dão abrigo a uma variedade de espécies animais, incluindo carnívoros como o gato selvagem, a raposa, a gineta, a fuinha, a lontra ou o texugo. Os grandes herbívoros – o veado e o corso sobretudo - também aqui encontram alimento por entre a vegetação natural.

Uma oportunidade para reverter o declínio da vida selvagem

Nas décadas mais recentes, porém, a natureza tem vindo a perder a sua funcionalidade devido à degradação e perda de habitat, perseguição da vida selvagem e também a uma crescente desvalorização da importância dos serviços ecossistémicos para a região.

cavalos sorraia, espécie autócone portuguesa
O Sorraia é oriundo do Ribatejo e é o último vestígio do cavalo primitivo do sul da Península ibérica. Foto: Rewilding Portugal

Com uma paisagem dominada por pequenas propriedades onde se cultivavam azeitonas, amêndoas e cereais, a agricultura tem vindo a desaparecer nos solos menos produtivos. Mas o abandono rural trouxe também uma oportunidade para restaurar estas vastas áreas caracterizadas por leitos rochosos de granito.

E este é precisamente o objetivo do projeto Promover a Renaturalização do Grande Vale do Côa, coordenado pela Rewilding Portugal. Trazer de volta espécies que já habitaram esta região é a operação que está em curso.

O paleolítico regressou para recuperar as paisagens do passado

Cavalos Sorraia - raça autóctone das zonas secas e planas do Sul da Península Ibérica-, e tauros, descendentes das vacas primitivas representadas nas pinturas rupestres, estão de regresso a estas paisagens para recriar os ecossistemas do passado, ampliar a biodiversidade e reduzir o risco de incêndios rurais.

Desde 2019, já foram libertadas duas manadas com 20 cavalos Sorraia e 15 tauros numa área de 20 km2.

Uma manada de oito bisontes-europeus também chegou, na primavera de 2024, ao Vale do Côa para aumentar o sequestro de carbono, estimular a biodiversidade e apoiar o crescimento do turismo de natureza. Embora monitorizados de perto, os animais pastoreiam em liberdade, promovendo o restauro dos processos naturais.

O Sorraia não é apenas uma raça autóctone do vale do Rio Sorraia, no Ribatejo. A espécie é, acima de tudo, o último vestígio do cavalo primitivo do Sul da Península Ibérica. É um animal selvagem extremamente resistente às condições ambientais, característica herdada, aliás, dos seus ancestrais.

Tauro, versão genética do extinto auroque
O tauro é uma versão genética do extinto auroque, profusamente representado em gravuras rupestres ao longo do Vale do Côa. Imagem: Staffan Widstrand / Rewilding Europe

A sua função enquanto herbívoro é considerada essencial para modelar a floresta e conservar as pastagens e áreas abertas, através do pastoreio natural. Ao fazer a gestão da biomassa, a espécie cria também mosaicos por entre a vegetação, diminuindo o perigo de fogos florestais e rurais.

A genética trouxe de volta o maior mamífero terrestre da Europa


Os tauros, por seu turno, são uma versão criada do extinto auroque, o descendente selvagem da vaca moderna. Com chifres longos e corpo maciço, foi outrora o maior mamífero terrestre da Europa, dado como extinto no século XVII devido à caça excessiva e perda de habitat.
bisonte-europeu
A translocação dos bisontes, provenientes de reservas naturais da Polónia, faz parte de um piloto para impulsionar o turismo e a regeneração da natureza. Foto: João Cosme/Rewilding Portugal

O seu regresso ao Vale do Côa é o resultado de um trabalho de investigação de uma equipa de geneticistas da Fundação Taurus, nos Países Baixos, que pretende reintroduzir a espécie em diferentes habitats selvagens da Europa.

Um novo impulso para a natureza e para o turismo

Os bisontes-europeus, por seu turno, vieram de reservas da Floresta Estatal Polaca e da European Friends Society. Habitam agora uma área de 7600 hectares das Termas de Monfortinho e da Herdade do Vale Feitoso, no distrito de Castelo Branco.

O expectável é que ajudem o solo a fixar mais carbono na atmosfera, contribuindo ainda para reduzir a vegetação inflamável. Assim que a espécie se aclimatar ao novo ambiente, o público poderá vê-los, através de visitas guiadas organizadas por empresas da Rede Côa Selvagem.

Obstáculos que precisam ser ainda superados

Ao reintroduzir na natureza espécies-chave, a Rewilding Portugal espera criar as condições adequadas para promover o retorno de grandes herbívoros, necrófagos e predadores, como águias-imperiais, abutres, lobos e íbex-ibéricos ou o lince-ibérico.

A iniciativa no Vale do Côa tem como grande objetivo recuperar um corredor natural que se estende desde o rio Douro, no Norte, até às montanhas da Malcata, no Sul. Mas essa meta está ainda longe de ser alcançada.

Embora a região esteja protegida por um parque arqueológico com gravuras paleolíticas, no Norte do Côa, e uma reserva natural no Sul da serra da Malcata, as vedações, as propriedades privadas e a paisagem fragmentada são ainda um enorme obstáculo ao movimento dos grandes herbívoros.

Referências da notícia

A chegada dos Sorraias ao Grande Vale do Côa. Rewilding Portugal

Primeira libertação de Tauros no Grande Vale do Côa vai potenciar o pastoreio natural. Rewilding Portugal

Bisontes europeus chegam pela primeira vez a Portugal. Rewilding Portugal