O rigor científico da nostalgia: como os postais antigos ajudam a estudar a costa portuguesa

Investigadores da Universidade Lisboa inauguraram uma abordagem inovadora, que usa fotos do passado para recolher dados do litoral e preencher lacunas em períodos em que as imagens aéreas ou de satélite não existiam.

Postal antigo com uma ilustração da Baia do Funchal, Madeira
Postal ilustrativo da Baía do Funchal, na Madeira, em 1900. Imagem: domínio público

No passado, não tão distante assim, os postais foram obrigatórios em todas as viagens ou escapadinha que os nossos avós fizeram pelo país ou pelo estrangeiro. Com imagens dos ex-líbris de cada destino, estas verdadeiras relíquias ainda são o deleite para os colecionadores de momentos nostálgicos. Mas, verdade seja dita, os postais ilustrativos da beleza local perderam importância diante da tecnologia.

Quem mais se daria ao trabalho de escolher um postal, escrever umas linhas para um amigo ou familiar e colocá-lo no marco do correio? Bem mais fácil é usar um smartphone para, em poucos segundos, resolver o assunto.

Custa a aceitar que, outrora tão populares, os postais possam desparecer da memória coletiva, mas talvez não tenha de ser assim, se soubermos reconhecer a sua importância. É que o seu valor não é meramente sentimental.

Abordagem científica inovadora

Fátima Valverde, Rui Taborda e Cristina Lira, investigadores do Instituto Dom Luiz, da Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa, descobriram que os nossos postais antigos têm também valor científico e estão a usá-los para estudar os avanços do mar e a evolução das praias.

A metodologia é inédita, no campo da ciência, mas o conceito por detrás da investigação é até bastante simples: olhar para o passado é, afinal, a melhor forma de compreender o presente e antecipar o futuro.

Em parceria com o United States Geological Survey, os investigadores usaram postais turísticos e fotografias históricas para retirar e analisar dados científicos sobre a evolução da linha costeira.

evolução da preia-mar, na praia Conceição-Duquesa através de postais antigos e imagens recentes
Os postais traçam a evolução da preia-mar, na estância balnear de Conceição-Duquesa (assinalada a vermelho nas imagens de baixo). Imagem: MDPI

O estudo, publicado na revista Remote Sensing, incidiu sobre a Praia da Conceição-Duquesa, em Cascais, para a qual se conseguiu reconstituir a linha de costa ao longo de 92 anos, recorrendo a imagens oblíquas captadas entre 1930 e 2022.

A abordagem, segundo os autores, permitiu preencher lacunas históricas em períodos do passado em que as imagens aéreas ou de satélite não existiam.

Através do estudo dos postais foi possível aumentar a janela temporal da monitorização costeira e obter uma visão mais completa dos fenómenos de erosão e subida do nível do mar.

O processo - explicam os investigadores – recorre à georreferenciação de imagens comuns –como postais antigos, imagens pessoais e também fotos tiradas com o telemóvel. Todos estes recursos são depois combinados com técnicas de correção geométrica e deteção da linha de costa.

Ao cruzar os dados de épocas distintas, os investigadores puderam medir com rigor científico a evolução da praia ao longo de quase um século.

Postal da praia da Conceição-Duquesa em 1930
Postal histórico da praia da Conceição-Duquesa em 1930. Imagem: MDPI

Entre várias conclusões retiradas da comparação de imagens, o estudo permitiu identificar uma rotação da linha de costa a partir da data de construção da marina de Cascais, em 1998, com impacto na morfologia da praia. Esta alteração ultrapassa a margem de erro da análise e revela os efeitos de intervenções humanas passadas no litoral.

Um recurso com potencial ainda por explorar

A técnica, de acordo com os cientistas, revela-se particularmente útil em países como Portugal, onde proliferam acervos visuais do litoral ainda por explorar, podendo por isso fornecer informação valiosa para estudar a evolução costeira em zonas consideradas mais críticas.

“Esta abordagem abre novas linhas na investigação e na gestão costeira. Em vez de nos limitarmos aos dados das últimas décadas, podemos alargar a linha temporal de análise com base em imagens guardadas em bibliotecas, museus ou até coleções privadas.”

Fátima Valverde, estudante de doutoramento e primeira autora do artigo.

Num momento em que as zonas costeiras enfrentam crescente pressão ambiental e urbanística, os postais e fotografias antigas, sendo um recurso ao alcance de todos, podem ajudar municípios e outras entidades de gestão territorial a adotarem medidas mais fundamentadas sobre erosão, proteção costeira e ordenamento do território.

Postal antigo da praia da Conceição-Duquesa em 1960
Postal histórico da praia da Conceição-Duquesa em 1960. Imagem: MDPI

Cruzar o conhecimento científico com património visual pode ser, portanto, uma nova ferramenta cientificamente válida para responder a desafios globais, como o avanço do mar e a perda de areal.

Fotografia atual (2022) da praia da Conceição-Duquesa
Fotografia atual (2022) da praia da Conceição-Duquesa obtida com um smartphone durante a maré baixa. Imagem: MDPI

A equipa do Instituto Dom Luiz espera, como tal, expandir o alcance desta metodologia a mais pontos do litoral português, ampliando, deste modo, o registo da transformação das praias, em Portugal.

Os postais e as imagens antigas, além de sucistarem a nossa nostalgia, vão também contribuir para definir estratégias mais eficazes de adaptação climática.

Referências da notícia

Fátima Valverde, Rui Taborda, Amy E. East & Cristina Ponte Lira. Historical Coast Snaps: Using Centennial Imagery to Track Shoreline Change. Remote Sensing.

Postais antigos revelam novos dados sobre evolução das praias de Cascais. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.