O lagarto que ignora o chumbo: como esses reptéis revelam mistérios da resistência tóxica

Os lagartos-anóis pardos de Nova Orleães revelaram-se o vertebrado mais tolerante ao chumbo conhecido, mantendo funções normais em níveis de exposição que seriam fatais para outras espécies. Saiba mais aqui!

Estes lagartos são amplamente utilizados em estudos de ecologia, evolução, comportamento e servem como importantes bioindicadores ambientais, já que interagem diretamente com o solo e detritos urbanos

O estudo analisou os efeitos da contaminação urbana por chumbo nos lagartos anóis pardos (Anolis sagrei) de Nova Orleães, uma cidade conhecida pelos elevados níveis deste metal pesado nos solos, resultantes do uso histórico de tintas e combustíveis com chumbo. O chumbo é altamente tóxico para vertebrados, afetando sistema nervoso, músculos, rins, fígado, coração e reprodução, e não existe nível considerado seguro para humanos, sobretudo crianças.

A cidade tem forte herança francesa, espanhola, africana e crioula, refletida na língua, gastronomia e arquitetura.

No entanto, os investigadores verificaram que os lagartos anóis apresentam uma tolerância surpreendente e sem paralelo entre os vertebrados conhecidos. Em campo, os lagartos exibiram concentrações médias de chumbo no sangue de 955 µg/dL, com registos individuais a ultrapassar os 3 192 µg/dL, valores muito superiores aos que causam efeitos letais em aves, mamíferos ou répteis previamente estudados.

A análise óssea mostrou igualmente acumulação a longo prazo, confirmando que estes animais vivem e se desenvolvem em locais altamente contaminados e quase não se deslocam do seu território, o que os torna excelentes biomonitores ambientais.

Os resultados

Apesar destes níveis extremos, os testes fisiológicos de locomoção (velocidade de corrida, resistência e equilíbrio) não revelaram efeitos negativos. Para aprofundar esta questão, foi conduzida uma experiência controlada em laboratório, onde lagartos capturados em áreas de baixa contaminação foram expostos, durante 60 dias, a doses crescentes de chumbo administradas oralmente.

Os resultados demonstraram que apenas em doses muito elevadas (100 e 500 mg/kg) surgiram sintomas de intoxicação, como perda de apetite e úlceras orais, com alguns indivíduos a morrerem.

Nos grupos de baixa dose (1 a 10 mg/kg), mesmo com concentrações sanguíneas superiores a 10 000 µg/dL, não foram observadas quedas significativas no desempenho locomotor. Assim, os valores-limite de toxicidade para estes lagartos revelaram-se mais de uma ordem de grandeza superiores aos níveis já de si extraordinários registados em campo.

São nativos de Cuba e Bahamas, mas espalharam-se por grande parte dos EUA, América Central e até alguns locais da Ásia, principalmente através de transporte humano.

Foram também avaliadas as alterações nos órgãos internos. Verificou-se aumento do fígado e dos rins em animais expostos, mesmo em doses baixas, o que pode indicar tanto uma resposta adaptativa de desintoxicação como potenciais danos a nível celular. Os testículos, por sua vez, só aumentaram de tamanho em doses muito elevadas, sugerindo impacto direto da toxicidade.

As conclusões

Os resultados permitem concluir que o anole pardo de Nova Orleães pode ser o vertebrado mais tolerante ao chumbo alguma vez registado, capaz de manter funções fisiológicas normais em níveis de exposição fatais para outras espécies. Esta resistência pode ser fruto de uma rápida adaptação evolutiva a ambientes urbanos poluídos, dado que os anóis já são conhecidos por responder de forma acelerada a pressões ambientais.

Para além de serem candidatos ideais a biomonitores de contaminação urbana, estes lagartos representam agora um novo modelo para investigar os mecanismos moleculares e fisiológicos de tolerância a metais pesados, fornecendo pistas relevantes não apenas para ecologia e evolução urbana, mas também para estratégias biomédicas de mitigação dos efeitos do envenenamento por chumbo. O estudo sublinha ainda a importância de integrar a problemática dos metais pesados nos debates da ecologia urbana, tradicionalmente mais centrados em fatores como calor, ruído ou iluminação artificial.

Referência da notícia

Annelise Blanchette, Kuan-Jiu Su, Alanna J. Frick, Jordan Karubian, Alex R. Gunderson, Unprecedented lead tolerance in an urban lizard, Environmental Research, Volume 285, Part 3, 2025, 122531, ISSN 0013-9351, https://doi.org/10.1016/j.envres.2025.122531.