O calor extremo durante o verão expõe um novo rosto da pobreza energética

O agravamento das temperaturas devido às alterações climáticas está a transformar a pobreza energética num fenómeno que deixa de ser exclusivo do inverno. No verão, a dificuldade em manter uma temperatura habitável afeta cada vez mais famílias vulneráveis.

Alterações climáticas e agravamento das temperaturas no verão
A pobreza energética ganha novos contornos com as alterações climáticas, associando-se à intensificação das ondas de calor e ao prolongamento dos verões.

Tradicionalmente associada ao inverno e à dificuldade de aquecer a casa, a pobreza energética ganha novas formas num mundo cada vez mais quente. As alterações climáticas estão a intensificar as ondas de calor e a prolongar os verões, tornando essencial o acesso a sistemas de arrefecimento. No entanto, milhões de pessoas em todo o mundo não conseguem suportar os custos associados a esse conforto mínimo – e, em muitos casos, vital.

O calor extremo e a nova face da pobreza energética na Europa

Na Europa, cerca de 30 milhões de pessoas não conseguiram manter as suas casas suficientemente quentes no inverno de 2021, segundo dados do Eurostat. Mas o desconforto térmico não conhece apenas o frio. Um relatório recente da Comissão Europeia estima que 19% dos agregados familiares da UE vivem com calor excessivo durante o verão, sendo os mais afetados os idosos, as crianças, as pessoas com doenças crónicas e os que vivem em edifícios mal isolados ou sem ar condicionado.

Marine Cornelis, especialista em consumo energético e diretora da consultora Next Energy Consumer, tem vindo a alertar para esta nova face da vulnerabilidade. Segundo afirma, “é muito mais difícil escapar do calor do que do frio”, lembrando que as ondas de calor matam já mais de 50 mil pessoas todos os anos na Europa. Cornelis sublinha que os efeitos da pobreza energética estival têm sido subestimados e mal abordados pelas políticas públicas, tradicionalmente orientadas para os meses frios.

A crise energética desencadeada pela pandemia de COVID-19 e agravada pela guerra na Ucrânia acentuou ainda mais esta realidade. Entre 2021 e 2023, a percentagem de pessoas em situação de pobreza energética na União Europeia passou de 6,9% para 10,6%. Em Portugal, os dados mais recentes apontam para uma taxa entre 10% e 20%, dependendo do critério utilizado – números que colocam o país entre os mais afetados da Europa.

O acesso à eletricidade continua a crescer, mas nem sempre se traduz em conforto térmico. Estima-se que 733 milhões de pessoas em todo o mundo ainda não tenham acesso à eletricidade, mas há mais de 1,1 mil milhões que, apesar de terem ligação à rede, não conseguem utilizá-la de forma fiável, segura ou economicamente viável. Um estudo de 2024, que cruzou dados de satélite com observações no terreno, revelou que muitos desses casos se concentram em zonas rurais e periféricas, mas também em bairros urbanos marginalizados.

No caso português, os contrastes entre o litoral e o interior e entre o norte e o sul são marcantes. A região sul, apesar do clima mais ameno no inverno, apresenta maior vulnerabilidade no verão devido à ineficiência energética dos edifícios e ao uso generalizado de sistemas de arrefecimento pouco eficazes. Esta desigualdade térmica reflete-se na saúde pública, no bem-estar e até na produtividade das populações.

Por que é urgente agir contra a pobreza energética de verão

A investigação mais recente, publicada na revista Energies, confirma que o aquecimento global poderá ter um duplo impacto: ligeiramente atenuar a pobreza energética no inverno, ao reduzir as necessidades de aquecimento, mas agravá-la significativamente no verão, ao aumentar a procura por arrefecimento. Um estudo europeu que analisou 31 localidades em oito países, incluindo Portugal, estima que até 2050 as necessidades de aquecimento diminuam cerca de 16,8% nas áreas rurais e 13,7% nas urbanas. No entanto, essa descida não compensará os novos desafios do verão, nomeadamente o aumento da procura por energia para climatização, muitas vezes inacessível a quem mais precisa.

As áreas rurais surgem, aliás, como particularmente vulneráveis. Os edifícios são geralmente mais antigos, maiores e menos eficientes, e o acesso a energias modernas é mais limitado. Muitas famílias dependem de lenha ou outros combustíveis sólidos, com riscos para a saúde e o ambiente. Por outro lado, os baixos rendimentos e níveis de escolaridade dificultam o investimento em soluções mais sustentáveis. Já nas cidades, os elevados custos de habitação, a baixa taxa de propriedade e o efeito da ilha de calor agravam as condições de vida de muitos agregados familiares.

Dificuldades no acesso a soluções perante o calor. Grupos vulneráveis são os que mais sofrem com o calor.
Grupos vulneráveis são os que mais sofrem com o calor, sobretudo os que vivem em áreas mais rurais. Baixos rendimentos e níveis de escolaridade justificam as dificuldades.

Para os especialistas, é urgente reformular as políticas públicas. As soluções propostas incluem a adaptação das tarifas sociais de energia aos períodos de calor, o reforço do apoio à renovação dos edifícios, a instalação de sistemas de arrefecimento eficientes e a criação de estratégias de resiliência energética adaptadas ao contexto territorial. Um exemplo é a criação de "lojas móveis de apoio energético" em áreas rurais, que prestem assistência técnica e social às populações mais isoladas.

Mas as políticas climáticas devem ser socialmente justas. Como alertam os investigadores em políticas ambientais, os impostos sobre o carbono e o fim dos subsídios aos combustíveis fósseis não podem recair sobre os mais vulneráveis. A devolução das receitas geradas por estas medidas aos grupos mais afetados, através de apoios diretos ou investimentos em habitação e energia limpa, pode transformar um risco numa oportunidade.

Referência da notícia

Dokupilová, D., Stojilovska, A., Palma, P., Gouveia, J. P., Paschalidou, E. G., Barrella, R., ... & Hamed, T. A. (2024). Exploring Energy Poverty in Urban and Rural Contexts in the Era of Climate Change: A Comparative Analysis of European Countries and Israel. Energies, 17(12), 2939. https://doi.org/10.3390/en17122939