Investigação histórica: este é o primeiro mapa completo que mostra como o cérebro toma decisões

A Fundação Champalimaud e mais 11 laboratórios europeus e americanos uniram-se em torno de uma missão ambiciosa, que poderá abalar a visão tradicional sobre os mecanismos cerebrais por detrás das nossas escolhas.

Sinapses iluminadas no cérebro
O estudo, publicado na revista Nature, revela que o processo de decisão está distribuído por todo o cérebro e não apenas em áreas isoladas, como até agora se acreditava. Imagem: DeltaWorks via Pixabay

Todos os dias tomamos dezenas de milhares de decisões que vão de escolhas aparentemente insignificantes, como o que comer ou o que vestir, até às mais complexas, que podem envolver investimentos financeiros, relações pessoais ou opções de carreira.

O ato de decidir em si é muito variável, indo desde resoluções que são inconscientes e automáticas até aquelas que exigem análises mais ponderadas.

Até agora, os cientistas estavam convencidos de que as escolhas mais complexas são processadas numa hierarquia passo a passo por regiões cerebrais especializadas.

Ao criar o Primeiro Mapa Cerebral Completo da Tomada de Decisão, uma equipa internacional de neurocientistas, veio, no entanto, desafiar a visão tradicional de que este processo está circunscrito a áreas específicas.

Ilustração de um homem diante de uma estrada bifurcada
Diante de uma decisão que é preciso tomar, os sinais são ativados em todo o cérebro num processo descrito como cascata coordenada. Imagem: Adobe Stock

Em vez disso, os sinais de decisão parecem estar amplamente distribuídos, ativando quase todo o cérebro numa cascata coordenada de atividade.

A descoberta, considerada “histórica”, foi revelada em dois artigos publicados na prestigiada revista Nature. As conclusões do estudo prometem agora alterar a nossa compreensão sobre o funcionamento cerebral.

A investigação implicou monitorizar mais de meio milhão de neurónios em 279 áreas do cérebro dos ratinhos, representando 95% do volume total. Os sinais de decisão, de movimento e até de recompensa foram encontrados em comunicação constante por quase todo o cérebro dos ratinhos.

A coordenação entre dois continentes

O estudo, liderado pelo International Brain Laboratory (IBL), contou com a participação de 12 laboratórios experimentais espalhados pela Europa e Estados Unidos, onde foram realizadas gravações neuronais em larga escala.

Neste intercâmbio entre os vários centros de investigação, o Laboratório de Neurociência de Sistemas da Fundação Champalimaud assumiu um papel determinante.

As instalações de Lisboa acolheram grande parte da equipa de engenharia responsável pelo desenvolvimento e manutenção da infraestrutura que tornou possível obter, sistematizar e analisar um conjunto de dados sem precedentes.

Atividade cerebral dos ratinhos durante as suas tomadas de decisão
A ilustração mostra a atividade cerebral dos ratinhos durante as suas tomadas de decisão. Imagem: Nature

Ao contrário da técnica de ressonância magnética funcional (fMRI), onde cada pixel pode refletir a atividade combinada de cerca de um milhão de neurónios, as medições realizadas neste estudo captaram a atividade de neurónios individuais ao nível dos seus picos de disparo. O processo permitiu obter uma imagem muito mais detalhada do cérebro e estabelecer um novo padrão técnico para este campo de investigação.

Um esforço coletivo para cumprir uma missão ambiciosa

Planeada desde 2017, com o apoio da Wellcome e da Simons Foundation, a missão do IBL nunca poderia ter sido alcançada por um único laboratório: medir o cérebro em ação, não apenas em fragmentos, mas como um todo.

"Coordenar 12 laboratórios experimentais em dois continentes foi um desafio logístico e científico de altíssimo nível."
Olivier Winter, Programador Científico Sénior do IBL na Fundação Champalimaud

Muito do esforço esteve concentrado em definir protocolos que pudessem ser executados por todos os parceiros. A maioria das colaborações internacionais divide as tarefas entre os laboratórios.

Neste caso, em especial, todos tinham de seguir os mesmos procedimentos, independente de estarem localizados em Lisboa, Londres ou Nova Iorque. Essa contingência exigiu construir de raiz toda uma infraestrutura – hardware, software ou rotinas de treino – para que tornasse impossível distinguir de onde vieram os dados.

O papel central da Fundação Champalimaud

Na Fundação Champalimaud, engenheiros e investigadores do IBL estiveram profundamente envolvidos na criação dos componentes essenciais do projeto. O laboratório de Lisboa foi um dos locais-piloto onde os equipamentos experimentais e os protocolos de treino foram prototipados, testados e aperfeiçoados.

Atividade cerebral no momento da decisão
Nesta imagem, retirada do estudo, os investigadores demonstram a atividade que ocorre no cérebro no preciso momento em que a escolha é feita. Imagem: Nature

Ao dividir o calendário experimental entre vários laboratórios, a equipa internacional conseguiu construir um conjunto de dados muito além da capacidade de qualquer grupo individual, testando ao mesmo tempo a reprodutibilidade da neurociência a uma escala global.

Como os ratinhos tomam decisões

A coordenação entre as várias equipas foi essencial para realizar uma tarefa, que na verdade, parece bastante simples: colocar um ratinho frente a um ecrã, com uma luz a piscar na parte esquerda ou direita do monitor.

O animal girava uma pequena roda para indicar a direção, recebendo uma gota de água como recompensa pela resposta correta.

As gravações neuronais foram realizadas com sondas Neuropixels de última geração, que medem a atividade de neurónios individuais em todo o cérebro durante a tomada de decisão

Em alguns ensaios, no entanto, a luz era tão ténue que o rato teve de adivinhar. Para fazer estas suposições, os animais recorreram à experiência prévia: se a luz apareceu mais vezes à esquerda em testes anteriores, a tendência foi virar para esse lado.

O comportamento permitiu aos investigadores estudar não apenas a perceção e a ação, mas também como o cérebro utiliza expectativas internas para orientar as escolhas.

representação de um estímulo visual durante o processo de decisão
A ilustração representa um estímulo visual durante o processo de decisão. Imagem: Nature

As descobertas apoiam a teoria de que o cérebro funciona como uma máquina de previsão, atualizando constantemente o seu modelo do mundo para dirigir o comportamento.

As implicações e os passos seguintes

A investigação, segundo os autores, pode também vir a ter implicações para estudar condições psiquiátricas como o autismo e a esquizofrenia, que se pensa envolverem perturbações na forma como as expectativas são formadas e ajustadas.

No futuro, o IBL ambiciona expandir o foco da investigação para além da tomada de decisão. Essa foi a razão, aliás, que levou o laboratório internacional a partilhar de forma aberta as ferramentas, bem como os conjuntos de dados e protocolos com a toda a comunidade científica.

Referências da notícia

Fundação Champalimaud Junta-se a Esforço Global para Criar o Primeiro Mapa Cerebral Completo da Tomada de Decisão. Fundação Champalimaud

International Brain Laboratory, Dora Angelaki, Brandon Benson, Julius Benson, Daniel Birman, Niccolò Bonacchi, Kcénia Bougrova, Sebastian A. Bruijns, Matteo Carandini, Joana A. Catarino, Gaelle A. Chapuis, Anne K. Churchland, Yang Dan, Felicia Davatolhagh, Peter Dayan, Eric EJ DeWitt, et al. A brain-wide map of neural activity during complex behaviour. Nature

Charles Findling, Felix Hubert, International Brain Laboratory, Luigi Acerbi, Brandon Benson, Julius Benson, Daniel Birman, Niccolò Bonacchi, E. Kelly Buchanan, Sebastian Bruijns, Matteo Carandini, Joana A. Catarino, et al. Brain-wide representations of prior information in mouse decision-making. Nature

Todos os dados, ferramentas e protocolos deste estudo estão disponíveis gratuitamente no site do International Brain Laboratory.