Investigação histórica: este é o primeiro mapa completo que mostra como o cérebro toma decisões
A Fundação Champalimaud e mais 11 laboratórios europeus e americanos uniram-se em torno de uma missão ambiciosa, que poderá abalar a visão tradicional sobre os mecanismos cerebrais por detrás das nossas escolhas.

Todos os dias tomamos dezenas de milhares de decisões que vão de escolhas aparentemente insignificantes, como o que comer ou o que vestir, até às mais complexas, que podem envolver investimentos financeiros, relações pessoais ou opções de carreira.
Até agora, os cientistas estavam convencidos de que as escolhas mais complexas são processadas numa hierarquia passo a passo por regiões cerebrais especializadas.
Ao criar o Primeiro Mapa Cerebral Completo da Tomada de Decisão, uma equipa internacional de neurocientistas, veio, no entanto, desafiar a visão tradicional de que este processo está circunscrito a áreas específicas.

Em vez disso, os sinais de decisão parecem estar amplamente distribuídos, ativando quase todo o cérebro numa cascata coordenada de atividade.
A descoberta, considerada “histórica”, foi revelada em dois artigos publicados na prestigiada revista Nature. As conclusões do estudo prometem agora alterar a nossa compreensão sobre o funcionamento cerebral.
A investigação implicou monitorizar mais de meio milhão de neurónios em 279 áreas do cérebro dos ratinhos, representando 95% do volume total. Os sinais de decisão, de movimento e até de recompensa foram encontrados em comunicação constante por quase todo o cérebro dos ratinhos.
A coordenação entre dois continentes
O estudo, liderado pelo International Brain Laboratory (IBL), contou com a participação de 12 laboratórios experimentais espalhados pela Europa e Estados Unidos, onde foram realizadas gravações neuronais em larga escala.
As instalações de Lisboa acolheram grande parte da equipa de engenharia responsável pelo desenvolvimento e manutenção da infraestrutura que tornou possível obter, sistematizar e analisar um conjunto de dados sem precedentes.

Ao contrário da técnica de ressonância magnética funcional (fMRI), onde cada pixel pode refletir a atividade combinada de cerca de um milhão de neurónios, as medições realizadas neste estudo captaram a atividade de neurónios individuais ao nível dos seus picos de disparo. O processo permitiu obter uma imagem muito mais detalhada do cérebro e estabelecer um novo padrão técnico para este campo de investigação.
Um esforço coletivo para cumprir uma missão ambiciosa
Planeada desde 2017, com o apoio da Wellcome e da Simons Foundation, a missão do IBL nunca poderia ter sido alcançada por um único laboratório: medir o cérebro em ação, não apenas em fragmentos, mas como um todo.
Olivier Winter, Programador Científico Sénior do IBL na Fundação Champalimaud
Muito do esforço esteve concentrado em definir protocolos que pudessem ser executados por todos os parceiros. A maioria das colaborações internacionais divide as tarefas entre os laboratórios.
Neste caso, em especial, todos tinham de seguir os mesmos procedimentos, independente de estarem localizados em Lisboa, Londres ou Nova Iorque. Essa contingência exigiu construir de raiz toda uma infraestrutura – hardware, software ou rotinas de treino – para que tornasse impossível distinguir de onde vieram os dados.
O papel central da Fundação Champalimaud
Na Fundação Champalimaud, engenheiros e investigadores do IBL estiveram profundamente envolvidos na criação dos componentes essenciais do projeto. O laboratório de Lisboa foi um dos locais-piloto onde os equipamentos experimentais e os protocolos de treino foram prototipados, testados e aperfeiçoados.

Ao dividir o calendário experimental entre vários laboratórios, a equipa internacional conseguiu construir um conjunto de dados muito além da capacidade de qualquer grupo individual, testando ao mesmo tempo a reprodutibilidade da neurociência a uma escala global.
Como os ratinhos tomam decisões
A coordenação entre as várias equipas foi essencial para realizar uma tarefa, que na verdade, parece bastante simples: colocar um ratinho frente a um ecrã, com uma luz a piscar na parte esquerda ou direita do monitor.
O animal girava uma pequena roda para indicar a direção, recebendo uma gota de água como recompensa pela resposta correta.
Em alguns ensaios, no entanto, a luz era tão ténue que o rato teve de adivinhar. Para fazer estas suposições, os animais recorreram à experiência prévia: se a luz apareceu mais vezes à esquerda em testes anteriores, a tendência foi virar para esse lado.
O comportamento permitiu aos investigadores estudar não apenas a perceção e a ação, mas também como o cérebro utiliza expectativas internas para orientar as escolhas.

As descobertas apoiam a teoria de que o cérebro funciona como uma máquina de previsão, atualizando constantemente o seu modelo do mundo para dirigir o comportamento.
As implicações e os passos seguintes
A investigação, segundo os autores, pode também vir a ter implicações para estudar condições psiquiátricas como o autismo e a esquizofrenia, que se pensa envolverem perturbações na forma como as expectativas são formadas e ajustadas.
No futuro, o IBL ambiciona expandir o foco da investigação para além da tomada de decisão. Essa foi a razão, aliás, que levou o laboratório internacional a partilhar de forma aberta as ferramentas, bem como os conjuntos de dados e protocolos com a toda a comunidade científica.
Referências da notícia
Fundação Champalimaud Junta-se a Esforço Global para Criar o Primeiro Mapa Cerebral Completo da Tomada de Decisão. Fundação Champalimaud
International Brain Laboratory, Dora Angelaki, Brandon Benson, Julius Benson, Daniel Birman, Niccolò Bonacchi, Kcénia Bougrova, Sebastian A. Bruijns, Matteo Carandini, Joana A. Catarino, Gaelle A. Chapuis, Anne K. Churchland, Yang Dan, Felicia Davatolhagh, Peter Dayan, Eric EJ DeWitt, et al. A brain-wide map of neural activity during complex behaviour. Nature
Charles Findling, Felix Hubert, International Brain Laboratory, Luigi Acerbi, Brandon Benson, Julius Benson, Daniel Birman, Niccolò Bonacchi, E. Kelly Buchanan, Sebastian Bruijns, Matteo Carandini, Joana A. Catarino, et al. Brain-wide representations of prior information in mouse decision-making. Nature
Todos os dados, ferramentas e protocolos deste estudo estão disponíveis gratuitamente no site do International Brain Laboratory.