Equipa portuguesa descobre acidentalmente bactéria que trava infeções no intestino

Investigadores do Instituto Gulbenkian de Medicina Molecular identificaram uma estirpe bacteriana que ajuda a recuperar a microbiota intestinal após tratamentos com antibióticos.

macrobiota do intestino
Por ser um habitante natural do intestino, a ARO112 poderia ser usada para restaurar a microbiota após tratamentos com antibióticos, reduzindo o risco de infeção e inflamação. Imagem gerada por IA: NextDesign/Adobe Stock

Quando a equipa de investigadores do Instituto Gulbenkian de Medicina Molecular (IGMM) se deparou com uma nova bactéria do grupo Klebisiella pneumoniae, temeram o pior. Havia boas razões para isso, já que estavam diante de uma família de patógenos na origem de inúmeras infeções hospitalares.

A descoberta foi meramente acidental e ocorreu enquanto estudavam a dieta e os antibióticos que afetam a macrobiota intestinal.

“Não estávamos à procura de um agente bioterapêutico vivo. Estávamos, sim, a testar como a comunicação bacteriana e o tratamento com antibióticos afetavam a recuperação da microbiota intestinal” contou a investigadora Karina Xavier, citada no comunicado do Instituto Gulbenkian de Medicina Molecular.

A coordenadora da equipa Karina Xavier e a doutorada Ana Rita Oliveira
A coordenadora da equipa Karina Xavier e a doutorada Ana Rita Oliveira (da esquerda para a direita) vão prosseguir a investigação em tecidos humanos. Foto: Ana Cláudia Marques da Silva/IGMM

Havia, no entanto, uma bactéria do grupo Klebisiella pneumoniae que estava sempre a aparecer. Comuns em hospitais, causam doenças graves como pneumonia, infeções urinárias e septicemia, sobretudo em pacientes de risco como idosos e imunocomprometidos.

Uma benfeitora injustamente ignorada

Desconfiando estar em diante de mais um temido agente patógeno, as investigadoras Ana Rita Oliveira e Karina Xavier decidiram fazer uma breve interrupção na sua investigação e dedicar algum tempo a conhecer os potenciais riscos desta bactéria.

Eis senão quando, inesperadamente, se depararam com uma nova amiguinha do nosso intestino. Alguns dos ratinhos expostos a Escherichia coli conseguiram combater a infeção depois de tratados com antibióticos.

A estudante de doutoramento Ana Rita Oliveira descobriu que a diferença entre a cobaias de laboratório que recuperaram e as outras que ficaram doentes era a presença de uma única espécie de Klebsiella não patogénica que parecia proteger o intestino contra infeções.

Batizaram-na de Klebsiella sp. ARO112 (ARO das iniciais de Ana Rita Oliveira). A bactéria, descoberta por acidente, não só é inofensiva como ajuda a recuperar a população de microrganismos, incluindo vírus, fungos e bactérias, que habitam o intestino e desempenham uma função protetora.

Em busca de uma nova geração de probióticos

O trabalho, descrito na publicação da especialidade Nature Communications, perspetiva novos probióticos terapêuticos, mas vão ser necessários mais estudos para determinar a prevalência desta estirpe bacteriana nos humanos. É que os resultados, embora promissores, foram obtidos com ratinhos.

Karina Xavier
A bioquímica Karina Xavier lidera o grupo de Sinalização Bacteriana, do Instituto Gulbenkian de Ciência, onde se estudam os sistemas que promovem a comunicação bacteriana entre espécies. Ana Cláudia Marques da Silva/IGMM

"Encontrámos esta bactéria no intestino de ratinhos, mas sabemos que está presente também em humanos. Só que não em todos os ratinhos nem em todos os humanos", explicou a investigadora, que lidera o Laboratório de Sinalização Bacteriana do Instituto Gulbenkian de Medicina Molecular.

“Uma microbiota saudável não é um campo de batalha — é uma comunidade equilibrada. O nosso trabalho é perceber como manter esse equilíbrio e, às vezes, basta a bactéria certa no momento certo.”

Karina Xavier, bioquímica do Instituto Gulbenkian de Medicina Molecular

O próximo passo será, portanto, conduzir mais testes, mas com células de tecido intestinal humano. O que se espera é que aqueles que já têm a bactéria, em situações que afetam a sua microbiota, estejam mais protegidos.

A colonização maciça como estratégia para derrotar os inimigos

Nos ratinhos, os cientistas verificaram que a ARO112 só conseguia colonizar em níveis elevados o intestino quando tinham uma microbiota desequilibrada por efeito da administração de um antibiótico.

Os investigadores estão por isso convencidos de que a bactéria poderá colonizar o intestino em qualquer condição, mas com níveis muito mais elevados em microbiotas que perderam as bactérias benéficas.

No laboratório, a ARO112 bloqueou os agentes causadores de doença, como a Salmonella e estirpes patogénicas da Escherichia coli, reduzindo também patologias associadas à inflamação intestinal.

Em ratinhos com doença inflamatória intestinal e microbiota comprometida, a administração de ARO112 após a exposição a antibióticos e à infeção bacteriana ajudou-os a recuperar mais rapidamente a sua flora intestinal, eliminou a infeção e reduziu significativamente a inflamação intestinal.

Uma heroína a viver temporariamente no intestino

Os antibióticos, como sabemos, são essenciais para combater infeções, mas perturbam a microbiota e diminuem a resistência bacteriana. Esta descoberta, no entanto, poderá abrir caminho para que, no futuro, o tratamento com antibióticos possa ser acompanhado por bactérias benéficas como a ARO112 para restaurar o equilíbrio intestinal.

A administração desta bactéria, após tratamentos com antibióticos para combater infeções e inflamação, pode ainda vir a ser uma alternativa precisa e segura a procedimentos como o transplante fecal – abordagem adotada para restaurar a flora intestinal gravemente danificada.

Os cientistas fizeram vários testes de segurança e concluíram que a ARO112 não apresenta nenhuma das características das bactérias causadoras de doença, ou seja, não forma biofilmes e não adquire facilmente genes de resistência a antibióticos.

E até quando lhe foi dada artificialmente uma resistência, a bactéria perdeu-a naturalmente poucos dias depois. Significa isto que a presença da ARO112 no intestino é temporária, desaparecendo à medida que a microbiota recupera.

Probióticos
Poderá a bactéria ARO112 vir a existir num comprimido probiótico? Possivelmente, mas são necessários mais testes. Imagem gerada por IA: Alexandre Patchine/ Adobe Stock

No final desta etapa da investigação, a ARO112 revelou-se como uma autêntica heroína de uma típica história de vilões. Terminada a missão, saiu de cena sem esperar por recompensas nem agradecimentos.

Referências da notícia

Sara Sá. Quando as bactérias boas contra-atacam: como uma Klebsiella inofensiva pode redefinir o futuro dos probióticos. Instituto Gulbenkian de Medicina Molecular

Vitor Cabral, Rita A. Oliveira, Margarida B. Correia, Miguel F. Pedro, Marc García-Garcerá, Carles Ubeda & Karina B. Xavier. Klebsiella ARO112 promotes microbiota recovery, pathobiont clearance and prevents inflammation in IBD mice. Nature Communications