Atacar ou reparar: o interruptor que os investigadores portugueses descobriram no nosso intestino
Equipa da Fundação Champalimaud descodificou o mecanismo de decisão do sistema nervoso do intestino. A descoberta ajuda-nos também a perceber por que comer fora de horas é um erro fatal.

Entre 100 e 500 milhões de neurónios habitam a superfície do nosso intestino. A sua função vai muito além de digerir os alimentos. Produzindo neurotransmissores que influenciam o humor ou o comportamento, atuam também como uma autêntica sala de comando.
Não é por acaso que lhe chamam o segundo cérebro. As suas proezas já foram largamente estudadas. Mas, até agora, desconhecia-se como acontece o diálogo entre o sistema nervoso do intestino e o sistema imunitário. Nem tão pouco se sabia qual é a linguagem molecular que torna essa comunicação possível.
A engrenagem ferroviária
Os investigadores da Fundação Champalimaud, em Lisboa, descodificaram finalmente um dos grandes mecanismos de decisão do intestino. Os cientistas compararam o seu sistema nevoso às agulhas dos carris, uma engrenagem ferroviária usada para desviar a trajetória dos comboios.
Mas diante de danos já provocados, é o “carril de reparação” que entra em ação para instruir os tecidos a iniciarem a regeneração e reconstrução da delicada barreira epitelial, que impede a entrada dos microrganismos nocivos.
Recorrendo a experiências com ratinhos, a equipa da Fundação Champalimaud demonstrou agora que o nosso segundo cérebro ajuda o sistema imunitário a decidir quando entrar em modo de ataque ou iniciar a reparação dos tecidos.

Uma vez que o mesmo sistema de recetores atua tanto no organismo de ratinhos como no de seres humanos, esta descoberta poderá ter implicações importantes para doenças intestinais, infeções ou cancros de origem inflamatória.
A primeira linha de defesa
O trabalho, publicado na revista científica Nature Immunology, está essencialmente focado num mensageiro neuroquímico VIP, libertado por determinados neurónios do intestino que estão apetrechados com antenas recetoras designadas de VIPR1.
As células epiteliais que revestem a mucosa intestinal são a primeira linha de defesa do organismo face ao mundo exterior, estando constantemente expostas a alimentos, microrganismos e potenciais agentes patogénicos.
Os bioengenheiros da Fundação Champalimaud acreditam que o interruptor do intestino está intimamente ligado ao comportamento alimentar e, por conseguinte, aos nossos ritmos biológicos diários.
Comer estimula a produção do neuroquímico VIP porque o risco de ingerir agentes infeciosos aumenta durante as refeições. Ativar o carril de ataque ajuda, portanto, a proteger o intestino.
Abre-se então o caminho para as inflamações crónicas, distúrbios metabólicos e doenças cancerígenas. Os resultados do estudo sugerem que, quando os ritmos circadianos e os padrões alimentares não estão sintonizados, o interruptor neuro-imunitário do intestino pode ficar desajustado e comprometer a sua capacidade regenerativa.

Os cientistas estão agora a investigar como os sinais do cérebro interagem com estas redes complexas de neurónios e células epiteliais ao longo do eixo cérebro-corpo. O intuito é descobrir mecanismos semelhantes às “agulhas dos carris” noutros órgãos, especialmente em circunstâncias que favorecem o cancro e a obesidade.
“É cada vez mais evidente que nada no nosso corpo funciona isoladamente”, concluem os autores do estudo, recordando que, de dia ou de noite, o sistema nervoso, o sistema imunitário, o microbioma e o metabolismo estão em diálogo contínuo.
Referência da notícia
“Mudar as agulhas” no intestino: como o “segundo cérebro” decide se deve atacar e reparar. Fundação Champalimaud