Como a viagem de 900 km da tartaruga do Zoomarine Algarve virou um caso de estudo internacional
A história de resiliência desta espécie é um contributo valioso para os cientistas entenderem rotas de migração, ameaças, bem como zonas de alimentação e nidificação.

A história de Salina poderia ter terminado no verão de 2021. Encurralada nas redes de pesca no rio Guadiana, foi encontrada a 19 quilómetros do mar por pescadores algarvios. Incapaz de subir à superfície para respirar, a tartaruga da espécie Caretta caretta foi resgatada e transportada imediatamente até ao Porto d’Abrigo, o centro de reabilitação do Zoomarine Algarve.
Com um anzol alojado no estômago e uma anemia diagnosticada, passou doze meses sob cuidados diários até recuperar os seus 51,8 kg de peso. Em julho de 2022, Salina regressou ao mar, mas não sem antes lhe ter sido colocado um transmissor satélite na carapaça. Os seus tratadores não estavam preparados para a separação e decidiram vigiar os seus próximos passos.
Seis dias depois, os dados de satélite revelavam que já tinha atravessado o Estreito de Gibraltar e entrado no Mediterrâneo. Percorrendo, nos meses seguintes, quase dois mil quilómetros em linha reta, desde o local onde foi devolvida, a tartaruga permaneceu mais de um ano no mar Tirreno, na costa de Itália.
Conhecido por ser um local importante para tartarugas-comuns no Mediterrâneo, a região fornece áreas cruciais para nidificação e alimentação - com recursos tróficos adequados –, sendo por isso muito frequentada por espécies como a Caretta caretta ou a tartaruga-de-couro.

O seu trajeto incluiu pontos estratégicos como o Mar de Alborão, as costas de Marrocos e Argélia e arquipélago das Baleares, a Sardenha e a zona entre a Sicília e a Calábria. O percurso foi acompanhado a par-e-passo, com a equipa do Zoomarine Algarve a partilhar as principais proezas de Salina com os seus seguidores nas redes sociais.
Embora a monitorização tenha terminado devido à perda de sinal — o que é comum devido à duração limitada das baterias — sabe-se que Salina sobreviveu pelo menos 392 dias após a reabilitação.
Diante de enormes obstáculos como alto tráfego marítimo, poluição plástica e pressão pesqueira, a sua natureza resiliente foi diariamente posta à prova, tendo conseguido percorrer 9.203 quilómetros, desde que deixou a costa algarvia.
O contributo de Salina para a ciência
A sua longa viagem deu origem a uma investigação pioneira no Algarve, oferecendo uma visão aprofundada sobre padrões migratórios, rotas de alimentação e origem populacional desta espécie ameaçada.
O estudo “Tracking and Genetic Analysis of a Rehabilitated Loggerhead Turtle in the Mediterranean” cruza informação genética com tracking satélite para compreender com maior precisão a conectividade entre regiões e fatores que influenciam a movimentação da tartaruga-comum, uma das seis espécies de tartarugas marinhas ameaçadas.
A utilização de um transmissor satélite permitiu recolher dados contínuos ao longo de 13 meses, registando deslocações, parâmetros ambientais e possíveis interações com atividades humanas.
Os resultados revelam o potencial da tecnologia para aprofundar o conhecimento sobre as ligações entre populações do Atlântico e do Mediterrâneo, bem como para identificar riscos associados à pesca e aos fatores ambientais.
As origens e os padrões migratórios
A rota de Salina revelou um padrão clássico para a espécie com áreas de alimentação no verão e outono em águas quentes (até 29 °C), migração para sul no inverno quando as temperaturas baixaram, "mantendo-se em zonas com cerca de 15 °C, no limite do conforto térmico, mas ainda dentro dos parâmetros toleráveis", concluíram os autores do estudo.

A análise genética indiciou, por outro lado, uma pista interessante, mas não conclusiva: Salina poderá ter nascido no Atlântico e ainda jovem ter migrado para o Mediterrâneo, um comportamento, aliás, conhecido entre a espécie.
Também não é de descartar a hipótese de ser “mediterrânica” de origem, nascida talvez nas praias da Calábria – precisamente a região onde acabou por se fixar. Embora sem respostas definitivas, o estudo fornece um dado considerado valioso para os investigadores: as águas algarvias são rotas críticas para tartarugas de múltiplas origens.
Num momento em que seis das sete espécies de tartarugas marinhas estão ameaçadas, cada dado recolhido ajuda a comunidade científica internacional a mapear áreas de risco, como pesca e temperatura, zonas críticas de alimentação, e ainda a ligar geneticamente as populações com diferentes proveniências.
Referência da notícia
João Neves, Antonieta Nunes, Yohann Santos & Isabel Gaspar. Tracking and Genetic Analysis of a Rehabilitated Loggerhead Turtle in the Mediterranean. ResearchGate