Hyper-Kamiokande: o detetor de neutrinos que promete resolver os maiores mistérios do Universo
Viajando a partir dos cantos mais violentos do cosmos, invisíveis e difíceis de detetar, os neutrinos podem conter as chaves para a origem, a matéria e o destino do Universo.

No imenso 'zoológico' de partículas elementares, nenhuma é tão enigmática quanto o neutrino, um verdadeiro fantasma cósmico: quase sem massa, sem carga elétrica e tão elusivo que biliões deles passam pelos nossos corpos a cada segundo sem deixar rastros.
Cada neutrino detetado é uma mensagem pura vinda do coração de uma estrela ou da explosão de uma supernova, pois são o produto direto dos fenómenos mais energéticos existentes, impossíveis de serem observados por outros meios.
Na década de 1920, os físicos notaram que o decaimento beta não conservava energia, algo impensável para a física. Foi então que Wolfgang Pauli propôs a existência de uma partícula invisível que escapava sem ser detetada, levando consigo a energia perdida.
Durante décadas, permaneceu apenas uma ideia teórica até que, em 1956, Frederick Reines e Clyde Cowan conseguiram detetá-la experimentalmente, confirmando a intuição de Pauli. Esse triunfo não apenas preservou uma lei fundamental, como também abriu as portas para um novo ramo da física.

Mas provar a sua existência foi apenas o primeiro passo. O verdadeiro desafio era capturar um número suficiente deles para estudar os seus mistérios. Assim começou uma série de experiências subterrâneas no Japão com detetores gigantes instalados sob montanhas.
O laboratório onde os fantasmas se tornam visíveis
Nas profundezas de uma mina japonesa, a mais de mil metros de profundidade, foi construído o primeiro laboratório dedicado à investigação de neutrinos. Na década de 1980, o Observatório Kamiokande realizou a primeira deteção em tempo real de neutrinos solares, abrindo uma nova janela para os processos que mantêm a nossa estrela viva.
Em 1987, o seu sucessor, o Kamiokande-II, registou neutrinos de uma supernova distante, marcando a primeira vez que a Humanidade observou diretamente o colapso de uma estrela. Esta conquista histórica rendeu a Masatoshi Koshiba o Prémio Nobel de Física em 2002 e marcou o início de uma nova era na astronomia de partículas.
O próximo salto veio com o Super-Kamiokande, um detetor gigantesco que revelou em 1998 que os neutrinos podem mudar de "sabor" à medida que viajam. Este fenómeno, conhecido como oscilação de neutrinos, implicava que eles possuíam massa, algo proibido pelo Modelo Padrão da física de partículas.
A descoberta foi tão importante que derrubou parte do mais sólido edifício teórico da ciência moderna, rendendo a Takaaki Kajita e Arthur McDonald o Prémio Nobel de 2015. Mas, além da glória académica, abriu um horizonte de questões fundamentais que somente uma experiência ainda maior poderia tentar responder.
Um colosso que caçará os segredos do Universo
O projeto Hyper-Kamiokande (Hyper-K) é o ápice de meio século de investigação, oito vezes maior que o seu antecessor, e promete ser o instrumento mais sensível já construído. Ele foi escavado numa caverna de 330.000 metros cúbicos e abrigará dezenas de milhões de litros de água ultrapura.
A sua estrutura parece saída de ficção científica, com um tanque cilíndrico de 73 metros de altura coberto com mais de 40.000 sensores que captarão o ténue brilho azul da luz Cherenkov, aquele "estrondo sónico" luminoso que denuncia a passagem de uma partícula subatómica.

Quando um neutrino colide com um átomo de água, ele gera uma partícula carregada que se move mais rápido do que a luz naquele meio, produzindo um cone de luz azul. Esse pequeno flash contém informações sobre a energia e o tipo de neutrino que o originou, uma assinatura que é interpretada com precisão cirúrgica.
Um dos maiores desafios do projeto foi isolar o detetor do campo magnético da Terra, o que será alcançado através de um sistema de bobinas que geram um campo oposto. Este feito tecnológico, desenvolvido por investigadores da Universidade de Oviedo, será essencial para atingir a sensibilidade necessária.
O que os neutrinos podem revelar-nos
Porque é que algo existe em vez de nada? Os neutrinos podem conter a resposta. O Hyper-K procurará diferenças entre neutrinos e antineutrinos, uma pista crucial para explicar porque é que a matéria prevaleceu sobre a antimatéria após o Big Bang. Detetar esta assimetria seria uma das maiores conquistas da história da física.
Outra questão crucial é se os neutrinos são as suas próprias antipartículas, as chamadas partículas de Majorana. Confirmar isto implicaria que o Universo tem uma memória de si mesmo, uma simetria quebrada que explica a sua própria origem. Esta descoberta abriria as portas para uma nova física, além do Modelo Padrão.
A experiência também determinará a massa absoluta dos neutrinos, um parâmetro ainda desconhecido. Saber qual dos três tipos é o mais massivo irá ajudar-nos a entender o papel que estas partículas desempenham na estrutura do cosmos, desde a formação das galáxias até à evolução do universo primordial.
Neutrinos de supernovas irão permitir-nos espiar o coração de estrelas moribundas. Cada partícula que atingir a Terra será uma cápsula do tempo. E talvez, quando decifrarmos estas mensagens, entenderemos não apenas como o Universo se formou, mas porque é que existimos nele.