Tinteiro romano de Conímbriga revela os incríveis segredos da escrita na Roma Antiga
A combinação de materiais e técnicas usada na tinta dos romanos não é um achado trivial. Por detrás de um vestígio milenar, os arqueólogos desvendaram uma tecnologia altamente avançada e desconhecida até agora.

A arqueologia conta-nos as histórias dos nossos antepassados através de pedras, ossos e cerâmica. Mas os objetos fragmentados ou deteriorados raramente conseguem chegar ao íntimo da vida quotidiana. É por isso que um pequeno tinteiro de bronze, desenterrado nas ruínas da antiga cidade de Conímbriga, perto de Condeixa-a-Nova, causou tanto entusiasmo na comunidade científica.
Várias evidências de literacia têm sido encontradas neste sítio arqueológico, desde caixas de selo, raspadores de pastilhas de cera e até outros tinteiros. O que, no entanto, é verdadeiramente um achado são os resíduos de tinta encontrados no interior do recipiente.
O estudo multidisciplinar publicado na revista Archaeological and Anthropological Sciences decifrou um dos grandes enigmas da Antiguidade Clássica e ofereceu uma visão sem precedentes sobre os registos escritos, a tecnologia e o comércio numa das províncias mais ocidentais do Império Romano.

O tinteiro de metal do tipo Biebrich, variedade característica da primeira metade do século I d.C, é o único desta categoria identificado em toda a Península Ibérica. Mas os sedimentos de tinta original é que são uma circunstância extraordinariamente rara em arqueologia.
Sujeito a uma série de sofisticadas técnicas analíticas para decifrar a sua composição, os resultados revelaram uma excecional complexidade tecnológica. Por detrás de um simples traço de escrita de um escriba romano, esconde-se uma autêntica alquimia alcançada com materiais, substâncias e perícias altamente refinadas.
Os ingredientes e os métodos
Comecemos então esta longa viagem pelo carbono amorfo. Encontrado em materiais como carvão ou fuligem, é o principal pigmento negro da tinta, obtido a partir da combustão a alta temperatura das matérias orgânicas.
Uma vasta gama de hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HAPs) foi também identificada. São compostos formados durante a combustão incompleta de madeira – o pinho ou o abeto -que deixaram indícios de reteno, um marcador específico das resinas de coníferas.

Mas nem só de fuligem é feita a tinta romana. As análises revelaram ainda a presença de fosfato de cálcio, um componente essencial do negro de osso, pigmento obtido pela calcinação de ossadas de animais. Foram ainda detetados compostos de ferro, sugerindo a junção de ingredientes típicos da tinta ferrogálica, obtida pela mistura de sulfato de ferro com taninos de noz-de-galha.
Para acrescentar consistência a esta mistura, os romanos usavam aglutinantes como cera de abelha e derivados de gordura animal. O sebo atuava como espessante e estabilizante, enquanto a banha, melhorava a adesão da tinta ao papiro ou ao pergaminho.
Implicações no vasto império
Ao reunir ingredientes como pigmento de carbono, negro de osso, substâncias ferrogálicas, cera e gorduras, os arqueólogos concluíram que a mistura usada em Conimbriga é uma tinta mista – uma descoberta central deste estudo, que oferece informações valiosas tanto sobre as escolhas tecnológicas locais como sobre os itinerários mais amplificados da produção de tinta na civilização romana.

Procurando retirar vantagens de diferentes materiais e metodologias, a fórmula híbrida, até agora, só era vagamente conhecida através de documentos escritos históricos. Os vestígios no interior do tinteiro de Conimbriga sugerem que os artesãos romanos, mesmo nas províncias periféricas, experimentavam e adaptavam as suas receitas para obter tintas mais intensas e permanentes.
A importância da Lusitânia
A descoberta, segundo os autores, também reforça a reputação de Conímbriga como uma cidade romana letrada e com relevância administrativa. A dois quilómetros de Condeixa-a-Nova, no distrito de Coimbra, foi um importante centro urbano da Hispânia, na província imperial da Lusitânia. O seu conjunto de ruínas é um dos maiores e mais bem preservados sítios arqueológicos de Portugal classificado como Monumento Nacional desde 1910.
Com termas, anfiteatros, um fórum, casas senhoriais adornadas com mosaicos policromos, como a Casa dos Repuxos, tem ainda uma muralha imponente do baixo-império, bem como vestígios de ocupação que remontam à Idade do Cobre. Não é por acaso que é o sítio arqueológico mais visitado em Portugal.

A cidade distingue-se pela sua avançada organização urbana com um impressionante aqueduto parcialmente soterrado, bairros para diferentes classes sociais e uma economia suportada no comércio e indústria de vinhos, azeite, cerâmicas, entre outros produtos. Recorrendo a novas técnicas de construção, com materiais como mármore e estuque, a cidade prosperou significativamente no século I a.C., sob o governo do imperador Augusto.
Referência da notícia
César Oliveira, Carlo Bottaini, Joeri Kaal, João Vinícius Back, António Candeias, António Pereira, Catarina Miguel, Ana Margarida Cardoso, João Perpétuo, Virgílio Hipólito Correia, Dulce Osório & Vítor Dias. Tracing literacy in Roman Conimbriga: insights from the metallurgy and ink of a Biebrich inkwell. Archaeological and Anthropological Sciences