Nesta ilha todos veem o mundo a preto e branco — e a ciência explica porquê
Num recanto do Pacífico, uma mutação genética transformou a forma como centenas de pessoas percebem o ambiente e enfrentam a luz.

Numa pequena ilha do Pacífico, onde o tempo parece correr ao ritmo das marés, há algo de verdadeiramente único nos olhos de quem ali vive. Em Pingelap, um pequeno atol nos Estados Federados da Micronésia (uma ilha em forma de anel, formada por recifes de coral, que rodeia uma lagoa interna), muitos não sabem o que é distinguir o vermelho do verde ou o azul do céu.
A razão? Uma mutação genética rara — acromatopsia — que alterou, ao longo de gerações, a forma como centenas percebem o mundo à sua volta.
“A acromatopsia é uma perturbação hereditária recessiva. Isto significa que, para que se manifeste, o paciente tem de herdar duas cópias do gene alterado ou mutado, uma da mãe e outra do pai”, lê-se num artigo publicado pelo ‘The Conversation’.
“Foram identificados seis genes associados à acromatopsia. No entanto, a maioria dos pingelapeses afetados apresenta uma mutação no gene CNGB3, localizado no cromossoma 8.”
Enquanto no resto do mundo esta condição afeta uma em cada 30 mil pessoas, segundo a National Eye Institute dos EUA, em Pingelap cerca de 10% da população vive sem cores, e um terço carrega o gene sem manifestar sintomas. Curioso?
Tudo começou há mais de 200 anos, quando um ciclone devastador, conhecido como Lengkieki, dizimou quase toda a população do atol. De acordo com os investigadores, sobraram apenas cerca de 20 pessoas para repovoar a ilha. Entre elas estava um homem que carregava uma mutação num gene conhecido como CNGB3. E foi assim que, ao longo das gerações, esse gene espalhou-se como quem passa uma receita de família — só que, neste caso, a "receita" bloqueia a capacidade de ver cores.
A base genética da acromatopsia
Mas o que é que falha exatamente? Nos nossos olhos, temos células chamadas cones que são responsáveis por captar a luz vermelha, verde e azul e transformar isso na rica tapeçaria colorida que vemos à nossa volta. Em pessoas com acromatopsia, essas células não funcionam porque o tal gene CNGB3 não consegue produzir uma proteína essencial para esse processo, explicou o geneticista Jay Neitz da Universidade de Washington numa entrevista à ‘Scientific American’ (2007).
“De forma mais concreta, o gene CNGB3 produz uma proteína que faz parte de um canal que atravessa a membrana celular dos cones, ligando o interior da célula ao espaço extracelular. Quando este canal funciona corretamente, mantém-se aberto em condições de escuridão, permitindo a entrada de iões positivos de sódio e cálcio na célula.
Por outro lado, quando a luz incide sobre os cones, estes canais fecham-se, provocando uma alteração no potencial da membrana dos cones. Esta mudança gera um sinal que percorre o nervo óptico até chegar ao cérebro, que interpreta essa informação e a transforma na perceção da cor. O mau funcionamento do canal impede que esta cadeia de processos ocorra”, nota o ‘The Conversation’.

Os primeiros sinais da acromatopsia costumam aparecer logo nos primeiros meses de vida, por volta dos dois meses. As crianças afetadas não conseguem distinguir cores e, à medida que crescem, tornam-se extremamente sensíveis à luz, chegando a sentir desconforto ou dor em ambientes muito iluminados. A visão é também menos nítida do que o normal, e os olhos podem apresentar pequenos movimentos involuntários, conhecidos como nistagmo.
Com o tempo, há ainda uma maior propensão para desenvolver cataratas. Mas há também um lado menos conhecido desta condição: quem vive com acromatopsia costuma ter uma visão noturna bastante desenvolvida.
Quando uma alteração genética oferece uma vantagem
Aliás, é curioso que, enquanto o dia lhes traz este desconforto e os obriga a usar óculos escuros, à noite estas pessoas veem melhor do que a maioria — uma espécie de "superpoder" noturno. Muitos habitantes de Pingelap adaptaram-se tão bem que fazem as suas tarefas mais exigentes depois do pôr do sol, desde a pesca até à colheita de frutas. É um pouco como se trocassem o mundo solarengo pelas sombras frescas da noite.
O fenómeno que levou a esta explosão da acromatopsia na ilha é conhecido pelos cientistas como o efeito de gargalo (bottleneck effect, em inglês). Quando uma população sofre uma redução drástica e depois volta a crescer a partir de poucos sobreviventes, certos genes (neste caso, o defeituoso) podem tornar-se muito mais comuns do que seriam noutras circunstâncias. O neurologista britânico Oliver Sacks ficou tão fascinado com esta história que viajou até Pingelap e escreveu sobre isso no seu livro ‘The Island of the Colorblind’ (‘A Ilha dos Daltónicos’).
Hoje, a ciência já trabalha em terapias genéticas para corrigir esta mutação. Num estudo publicado na ‘Nature Medicine’ (2018), investigadores conseguiram restaurar a perceção de cores em macacos com acromatopsia através de terapia genética — um primeiro passo promissor para, quem sabe, um dia devolver as cores ao povo de Pingelap.
Enquanto isso não acontece, os pingelapeses continuam a viver num mundo onde as cores são apenas um conceito abstrato — e, de certo modo, mostram-nos que a vida pode ser bela e rica, mesmo quando vista a preto e branco.